Uma nova forma, o mesmo perigo

Às vésperas de decisão sobre comercialização de cigarros eletrônicos, especialistas defendem que os dispositivos são tão prejudiciais quanto os convencionais.

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Às vésperas de decisão sobre comercialização de cigarros eletrônicos, especialistas defendem que os dispositivos são tão prejudiciais quanto os convencionais.

Embora sejam proibidos, os cigarros eletrônicos estão por toda a parte. Sob a promessa de serem menos nocivos à saúde ou pela ilusão da troca dos produtos convencionais por alternativas mais seguras, os Dispositivos Eletrônicos para Fumar (DEFs) – como são conhecidos tecnicamente – se tornaram realidade no Brasil e a sua proliferação pode ganhar caminho livre em breve.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – órgão que hoje, por meio da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 46, proíbe a comercialização, importação e propaganda dos DEFs – pretendia, ainda em 2021*, concluir uma revisão da legislação, o que não ocorreu. E há muita pressão pela liberação, sobretudo da indústria do tabaco.

Conforme reportagem do UOL publicada em outubro último, gigantes do setor têm investido na contratação de políticos profissionais como lobistas – para defenderem os interesses das corporações junto aos parlamentares e servidores responsáveis pelas decisões acerca do tema. Chamou atenção, ainda, a troca, em julho último, da gerente responsável por analisar os DEFs, Stefania Piras, que já tinha negado autorização aos cigarros eletrônicos, por um novo profissional que não fazia parte dos quadros da Agência, o administrador Luiz Bernardo Viamonte.

“Stefania é farmacêutica, especialista em regulação, tem anos de experiência. Nem se compara com alguém de fora, que está pegando o bonde andando e nem formação específica na área tem”, disse ao UOL o presidente do Sindicato Nacional das Agências Reguladoras (Sinagências), Cléber Ferreira. À mesma reportagem, a Anvisa defendeu a nomeação e afirmou que Viamonte possui ampla experiência na área da Saúde e que atuou na Agência entre 1999 e 2006, quando da criação da antiga Gerência de Derivados do Tabaco.

Posição dos médicos

Ricardo Meirelles, presidente da Comissão de Combate ao Tabagismo da Associação Médica Brasileira, diz que a instituição apoia a manutenção da RDC da Anvisa. “Em um momento de redução do tabagismo no País, temos que cortar esse mal pela raiz, antes de as pessoas adoecerem. Não temos que normalizar o que não é normal”, defende.

O grupo do qual Meirelles faz parte é antigo dentro da AMB. Ele existe desde os anos 1980 e já passaram por lá referências da área como José Rosemberg e Antonio Pedro Mirra. Levantando um debate que ainda era incipiente, a Comissão tem trabalhado, desde então, junto ao Instituto Nacional de Câncer (Inca), do Ministério da Saúde, e outras instituições que se debruçam sobre o tabagismo no Brasil.

Em novembro, inclusive, os médicos se posicionaram em nota pública contra tentativas de liberação dos DEFs que chegaram por outra via: não a da discussão regulatória, mas a do debate parlamentar. A reação foi em relação ao Projeto de Lei 3.352/2021, apresentado pelo deputado federal Kim Kataguiri, que pretende equiparar as normas de regulação entre os novos dispositivos e os cigarros tradicionais. O parlamentar não considera justificativa para proibição o fato desses dispositivos fazerem mal à saúde, pois “os indivíduos devem ter liberdade para determinar a sua vida e a sua própria saúde”.

“Como falar em liberdade com o uso de uma droga psicoativa pesada como a nicotina, que torna a maioria de seus dependentes cativos da indústria do tabaco pelo resto de suas vidas e que os levará ao adoecimento e à morte prematura? Esta indústria perversa, que agora demoniza o outrora glamourizado cigarro convencional, vem afirmando que os DEFs são úteis na tentativa de cessão do tabagismo ou na redução do consumo de cigarros – a chamada redução de danos”, rebate a nota da AMB.

A Associação lembra, inclusive, que a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou não haver suficientes evidências científicas independentes para respaldar o uso dos cigarros eletrônicos como uma intervenção para a cessação do tabagismo em nível populacional ou para ajudar as pessoas a deixarem o consumo convencional do tabaco. A entidade global classifica estes produtos como “indubitavelmente maléficos”.

Entendimento respaldado, em 2020, pela União Internacional contra a Tuberculose e Enfermidades Respiratórias, que ressalta, ainda, a necessidade de divulgação sobre o impacto dos cigarros eletrônicos nos países de média e baixa renda, onde são introduzidos de forma agressiva, sem marcos regulatórios e entre jovens particularmente vulneráveis.

DEFs e seus malefícios

Os DEFs circulam pelo mundo há pelo menos uma década e seus diferentes modelos são chamados popularmente de diversas maneiras. Produtos de tabaco aquecido, cigarros eletrônicos, e-cigs, pods, vaporizadores, vapes, pendrives e pods são alguns dos exemplos. Quase todos funcionam como equipamentos à bateria em que o usuário insere uma essência líquida que pode ou não conter nicotina, quando não o próprio tabaco ou cartuchos com nicotina. Apesar de a venda ser proibida no País, o comércio virtual é ampla e facilmente acessível.

Conforme Ricardo Meirelles explica, o diferencial é que por meio deles, não há combustão, como no cigarro tradicional, nem algumas substâncias como o monóxido de carbono.

“Estudos dos Estados Unidos mostraram, porém, que mesmo alguns cigarros eletrônicos que diziam não ter nicotina, apresentavam traços da substância. Enquanto os que deveriam ter algum grau de nicotina tinha, na realidade, muito mais do que os usuários sabiam. Além disso, foram identificadas cerca de 80 substâncias nos aerossóis produzidos nos DEFs, muitas delas tóxicas e cancerígenas”, alerta.

Parte do apelo se deve ao fato de os cigarros eletrônicos entregarem a nicotina em forma de “sal de nicotina”, uma estrutura mais próxima à encontrada nas folhas de tabaco, facilitando a inalação por mais tempo e com menos desconforto. Outro estimulante são os aditivos e aromatizantes inseridos nos produtos, tornando a utilização menos incômoda.

A sensação de “leveza”, porém, é extremamente enganosa. Nos dispositivos em formato de pendrive, os cartuchos de recarga têm concentração de até 5% de nicotina. “Isso é muito mais do que o cigarro convencional. Um cartucho equivale a um maço com 20 cigarros”, detalha Meirelles.

Casos nos Estados Unidos já alarmaram a comunidade internacional. Entre agosto de 2019 e fevereiro de 2020, houve um surto de doença pulmonar aguda ou subaguda grave no país, batizada de EVALI (e-cigarretes or vaping product use-associated lung injury). Os acometidos eram jovens usuários de DEFs. Foram 2.807 casos e 68 mortes confirmadas. “Foi identificada a presença de acetato de vitamina E nos pulmões dos pacientes, mas ainda são necessários mais estudos para descartar a contribuição de outras substâncias para esta síndrome”, complementa o presidente da Comissão da AMB.

Tabagismo convencional

Muito além dos cigarros eletrônicos, é preciso entender, argumenta Ricardo Meirelles, que o tabagismo se tornou uma grande pandemia. No mundo, são mais de um bilhão de fumantes. As mortes em decorrência do uso de tabaco alcançam mais de oito milhões em todo o Planeta – cerca de um milhão destes, inclusive, de “fumantes passivos”. Por isso, o especialista considera este o “maior problema de saúde pública do mundo”.

Até 2030, a estimativa do Ministério da Saúde é que o cigarro seja diretamente responsável por até 10% das mortes globais. O órgão destaca, inclusive, que 80% dos fumantes do mundo vivem em países de média e baixa renda, onde o impacto das doenças e das mortes é maior.

No Brasil, são cerca de 162 mil mortes anuais atribuíveis ao tabaco – 443 mortes diárias. Esse número posiciona o tabagismo como o terceiro maior fator de risco para anos de vida perdidos ajustados por incapacidade no País. Além do custo social e emocional, o Ministério da Saúde estima prejuízos da ordem dos R$ 125 bilhões relativos aos impactos produzidos pelo cigarro nos sistemas de Saúde e na Economia.

O Programa Nacional de Controle do Tabagismo existe desde os anos 1980. Em 2005, ele passou a integrar a Política Nacional de Controle do Tabaco do Ministério da Saúde, quando houve a ratificação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, um plano de redução do tabagismo da OMS que contou com papel de liderança do Brasil durante as negociações. “Em 1989, 35% da população eram tabagistas. Hoje, o índice é de cerca de 12%. Embora em números absolutos seja bastante [cerca de 20 milhões de pessoas], avançamos muito e vimos que as ações têm efeito”, afirma Meirelles.

O médico se refere a ações como tributação dos cigarros, controle ao contrabando, retirada de sabores que mascaram a fumaça, proibição de propagandas e do fumo em ambientes fechados, além da implantação de tratamento gratuito pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para quem deseja parar de fumar. Em sua experiência clínica, viu muitos deixarem o cigarro justamente por não poderem mais fumar em espaços internos. “É muito importante que as pessoas queiram parar de fumar. O indivíduo fuma pela dependência.