IAs colocam a medicina em encruzilhada ético-tecnológica
Existe sigilo entre médico, paciente e algoritmo?
Enciclopédia, telefone fixo, internet discada, monitor de tubo e tantas outras coisas comuns do dia a dia evaporaram num piscar de olhos. Em menos de três décadas, a tecnologia transformou o jeito de viver, de trabalhar, de ensinar e de aprender, inclusive na medicina. Em meio a essa erupção de novas tecnologias, qual é o limite ético?
Essa pergunta é inevitável porque não estamos mais lidando com automações de processos, e sim com inteligência artificial (IA) generativa, com algoritmos capazes de criar textos, imagens, interpretar relatórios, analisar exames e (supostamente) apresentar diagnósticos. A medicina encontra-se numa verdadeira encruzilhada ético-tecnológica e a geração atual de médicos – boa parte nascida e imersa nos recursos tecnológicos – precisa definir limites claros para o seu uso.
A delimitação dessa fronteira, sem sombra de dúvidas, começa com o processo de regulamentação. Não adianta ignorar as tecnologias, uma vez que já permeiam a nossa rotina, do aplicativo do GPS no celular aos robôs de última geração nos centros cirúrgicos. No Brasil, o Congresso Nacional discute o marco regulatório da Inteligência Artificial, um passo importante nesta maratona. Porém, a discussão médica precisa ser ampliada e debatida com os médicos.
Além da regulamentação do uso direto da IA na medicina, as plataformas digitais também precisam ter normas claras. O ambiente digital não pode ser tratado como algo à parte. Nas redes sociais, informações médicas e científicas são frequentemente distorcidas. Crianças e adolescentes são expostos a conteúdos danosos, que comprometem o desenvolvimento saudável. A comovente série Adolescência, da Netflix, exemplifica bem este cenário sobre o qual precisamos nos debruçar.
Não se trata de censura, mas de regulamentação — que nada mais é do que educação para o uso. Se em 1950, o matemático, cientista da computação britânico e considerado o pai da IA, Alan Turing, perguntava: poderão as máquinas pensar? Hoje, sabemos que podem ir além. Que podem aprender a partir do conhecimento humano ordenado e por meio do processo de Machine Learning (aprendizado de máquina). O potencial de aprendizado é exponencial, atrativo, uma vez que pode prever tendências e otimizar processos, e entremeia toda a sociedade.
A pesquisa TIC Saúde 2024 revelou que cerca de 4% dos estabelecimentos de saúde brasileiros utilizam IA de forma institucionalizada. O mesmo estudo identificou um porcentual maior entre os médicos, chegando a 17%. Diante desse avanço imparável, volto ao questionamento inicial: qual é o limite ético? Ninguém discorda dos avanços benéficos da tecnologia. Porém, precisamos pensar na ética, nos dados sensíveis dos pacientes que alimentam esses sistemas. Ora, para esses sistemas evoluírem, precisam trocar informações. Como garantir a privacidade dos pacientes nesse processo? Como garantir, sobretudo, a privacidade das crianças? Como garantir o sigilo médico? Existe sigilo entre médico, paciente e algoritmo? Como ensinar isso a um algoritmo?
O trabalho médico vai muito além de interpretar exames de imagens ou laboratoriais, começa na anamnese bem feita. Esse contato interpessoal, além de uma dose de humanidade nas relações diárias, permite um diagnóstico individualizado, o que ainda não ocorre apenas com a IA, que é programada para atingir determinados resultados. Tanto é que a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2023, apontou riscos associados ao uso de plataformas que imitam a compreensão, o processamento e a produção da comunicação humana.
Nesse sentido, o Livro Branco: Inteligência Artificial (IA), inquietações sociais, propostas éticas e orientações políticas, elaborado por um grupo de especialistas do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida de Portugal, fez alertas importantes, como o risco da diluição de responsabilidade na prática médica com o uso de IA.
Só neste quesito, os especialistas citam seis aspectos que podem impactar a relação clínica: desigualdade no acesso a cuidados de saúde de qualidade, transparência na relação com as pessoas doentes, risco de viés social em sistemas de IA, diluição da percepção de bem-estar por parte da pessoa doente, risco de desqualificação profissional e de diluição da responsabilidade e impacto no direito à privacidade.
Se estamos falando em diluição da responsabilidade, então, o médico deixa de tomar as decisões? Espero, de forma especial, que os pediatras não renunciem à autonomia médica, porque uma coisa é usar IA como ferramenta para facilitar a rotina; outra é desconsiderar anos de estudos e prática médica.
Além da regulamentação, a formação médica precisa colocar em pauta com os estudantes de medicina não só os avanços tecnológicos e o uso ético da IA, mas a relevância do saber médico, da apropriação desse conhecimento, do contato com o paciente, da leitura do que não é expresso em palavras, porque é isso que dá segurança nas decisões diárias e dispensa, naturalmente, sugestões de sistemas ainda carregados de limitações.
Em última análise, parafraseando o sociólogo polonês Zygmunt Bauman em sua teoria da modernidade líquida, as mudanças tecnológicas exigem uma abordagem flexível e adaptável. Por isso, a regulamentação do uso da IA, especialmente na medicina, embora urgente, precisa ser moldada de forma a acompanhar o ritmo das transformações da sociedade e da tecnologia, mas garantindo que a medicina continue a ser uma prática humana, ética e responsável, com foco no bem-estar e na dignidade de todos.
Clóvis Francisco Constantino, diretor de Previdência e Mutualismo Adjunto da APM
Fonte: Estadão – acesse aqui