Nos últimos anos, a classe médica tem enfrentado cada vez mais dificuldades com relação aos vínculos empregatícios. Profissionais da Saúde, sobretudo médicos que trabalham em sistema de plantões, veem cada vez mais rara a contratação via Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), o número de trabalhadores no setor privado sem carteira assinada atingiu 13,2 milhões no final de 2022, refletindo a precarização e a busca de empresas por alternativas menos onerosas.
No setor da Saúde, no qual o trabalho contínuo em hospitais e clínicas exige flexibilidade, empresas e hospitais têm recorrido a formas alternativas de contratação, como a Pessoa Jurídica (PJ) e a Sociedade em Conta de Participação (SCP). Embora esses modelos sejam atraentes para o empregador por evitarem encargos trabalhistas, especialistas alertam que, no caso da SCP, os riscos são particularmente altos para os médicos – especialmente os mais jovens, recém-formados.
A princípio, o modelo pode parecer vantajoso, mas, segundo o advogado Bruno Muffo, da MedAssist, ele traz implicações graves e ilegais, especialmente do ponto de vista fiscal e da responsabilidade civil.
Entenda a SCP
A Sociedade em Conta de Participação é um tipo societário descrito no Código Civil de 2002, dos artigos 991 ao 996. Muffo esclarece que este é um modelo de sociedade no qual as pessoas podem se reunir para abrir um negócio, existindo os sócios ostensivos e os sócios participantes.
Os sócios ostensivos são os responsáveis pela administração do negócio, ou seja, eles cuidam das atividades operacionais da empresa; o artigo 991 do Código Civil enfatiza: “[…] a atividade constitutiva do objeto social é exercida unicamente pelo sócio ostensivo, em seu nome individual e sob sua própria e exclusiva responsabilidade.” Os sócios participantes, por sua vez, aparecem como investidores e não devem se envolver nas atividades do empreendimento, participando apenas dos resultados correspondentes.
“Antes da renovação do Código Civil, em 2002, o sócio participante era chamado de sócio oculto, e isso foi modificado. A lei prevê que se ele se envolver na atividade principal, assumirá todos os riscos da operação”, diz o advogado, enfatizando que a SCP é muito utilizada em empreendimentos imobiliários, pois as construtoras geralmente precisam de investimento para iniciarem uma obra e esta modalidade é a menos burocrática.
Segundo o especialista, a facilidade de montar uma estrutura de negócio como a Sociedade em Conta de Participação é um dos fatores que levam as pessoas a investirem. “Diferentemente das outras sociedades – que necessitam de registro em cartório ou na Junta Comercial, tudo isso com muita burocracia -, a SCP tem esse caráter de personalidade não jurídica. Os membros societários podem simplesmente assinar um contrato e engavetar. Esses documentos não são públicos.”
Entretanto, de acordo com o site do Jusbrasil, esse tipo de sociedade ainda é visto por muitos como um mecanismo de fraudes.
Classe médica
No setor médico, a SCP tem sido usada como uma forma de contratar profissionais para atuação em hospitais e clínicas sem vínculo formal, o que caracteriza uma prática ilegal, de acordo com Bruno Muffo. “Quando você usa uma Sociedade em Conta de Participação para contratar médicos, está configurando uma situação na qual o sócio participante acaba desempenhando um papel operacional, o que é vedado pela lei”, diz ele.
Além disso, a Receita Federal tem intensificado a fiscalização sobre essa prática, já que considera o uso deste modelo para contratação de profissionais da Medicina como uma forma de fraude tributária. “Se a Receita identifica que um médico está declarando rendimentos como sócio participante de uma SCP ligada a serviços médicos, ela imediatamente questiona essa estrutura e pode aplicar multas, além de cobrar os impostos retroativos dos últimos cinco anos, com juros e multas altíssimos”, explica.
Além das questões fiscais, a sociedade traz riscos adicionais para médicos. O sócio participante, ao atuar na atividade principal da empresa, pode ser responsabilizado civilmente em casos de má conduta ou falhas nos serviços. “Se houver um erro e o médico for tratado como sócio da Sociedade em Conta de Participação, ele pode responder legalmente como se tivesse envolvimento direto na administração do negócio. Esse risco é desnecessário e prejudicial”, destaca o advogado da MedAssist.
Outro problema apontado por ele é a falta de informação. Muitos médicos desconhecem os riscos do modelo, já que, ao serem contratados por meio dessa estrutura, geralmente acreditam que estão em uma relação de trabalho comum. “Os médicos que trabalham em regime de plantão são os mais vulneráveis a esse tipo de contratação, porque muitas vezes não possuem uma estrutura própria de atendimento e acabam se vinculando a hospitais e empresas terceirizadas que usam a SCP”, explica Muffo. O advogado ainda ressalta que empresas que operam no setor de Saúde encontram nesta sociedade uma maneira ágil de reunir equipes médicas de diferentes especialidades, o que torna o processo de alocação mais rápido e menos oneroso para elas.
Recomendações
A primeira orientação do especialista para médicos que se encontram nessa situação é procurar o apoio de advogados e contadores especializados. Ele explica que esses profissionais podem ajudar a entender os detalhes da SCP e alertar sobre as possíveis consequências tributárias e legais desse modelo de sociedade. “É importante que o médico compreenda o tipo de vínculo que está sendo oferecido e recuse a proposta”, orienta.
Além disso, Bruno Muffo recomenda que profissionais da Medicina em situações semelhantes se unam para questionar as empresas que praticam esse tipo de contratação. “A união é uma forma de pressão. Quando um grupo de médicos se organiza para questionar a empresa, essa ação ganha força e há mais chances de que mudanças ocorram.” Ele acredita que, quanto mais profissionais tiverem ciência dos riscos, menos comum será esta prática no setor médico.
Para o jurista, o modelo ideal de contratação para médicos ainda é o regime CLT – com direitos como férias, FGTS e licença-maternidade -, embora ele reconheça que as características da profissão e a alta rotatividade tornam esse tipo de vínculo cada vez mais difícil de se concretizar. Mesmo assim, enfatiza que a escolha de um modelo de contrato deve priorizar a proteção do profissional e evitar riscos. “A SCP é uma alternativa arriscada que não oferece qualquer benefício para o médico; pelo contrário, coloca-o em uma posição de extrema vulnerabilidade”, conclui o advogado.
Texto: Ryan Felix (sob supervisão de Giovanna Rodrigues)
Foto: XB100
Publicado na edição 747 (Nov/Dez de 2024) da Revista da APM