Há mais de uma década que a Medicina brasileira vem enfrentando adversidades contínuas. O lançamento do Programa Mais Médicos, em 2013, permitiu a abertura desenfreada de escolas médicas ao redor do País, com a premissa de diminuir defasagens no atendimento e levar profissionais para as regiões mais remotas do Brasil. Na prática, o que se observa é uma queda abrupta na qualidade dos recém-formados, com consequência direta no atendimento à população.
A Associação Paulista de Medicina entende que, infelizmente, a batalha contra a abertura indiscriminada de faculdades já está perdida. Por isso, defende a criação de um Exame de Proficiência, como o proposto pelo projeto do senador Astronauta Marcos Pontes, de forma que apenas as pessoas que comprovadamente saibam Medicina possam obter o registro e trabalhar na assistência aos pacientes.
Além disso, a APM entende que a residência médica é o último reduto de qualidade na educação, estando alerta a qualquer proposta a respeito do tema, que tem sido alvo de uma série de eventos e ações nos últimos meses. No dia 12 de maio, por exemplo, foi lançado um edital visando à adesão de órgãos e instituições para apoio à criação de Programas de Residência Médica e de Residência em Área Profissional da Saúde (Multiprofissional e Uniprofissional) estratégicos para o Sistema Único de Saúde – SUS.
Para o presidente da Associação, Antonio José Gonçalves, a proposta é preocupante, pois engloba o receio de que aconteça com a residência médica o mesmo que vem ocorrendo com a graduação, formando especialistas despreparados em instituições sem a infraestrutura necessária. “Acredito que não é desta maneira que vamos preencher a lacuna da má distribuição dos médicos e da formação de especialistas qualificados. O que há de ser feito é um investimento maior na residência, contando com o apoio das sociedades de especialidades no credenciamento”, detalha.
O médico e assessor do senador Marcos Pontes, Marcelo Morales, explica que a expansão da residência médica para regiões mais afastadas dos grandes centros pode representar um avanço na política de formação médica, desde que critérios técnicos rigorosos sejam obedecidos. “Quando implementada de forma acelerada e desprovida de infraestrutura assistencial adequada, essa estratégia transforma-se em um risco formativo. O exercício da Medicina, especialmente durante a residência, demanda ambientes com densidade clínica, supervisão qualificada, diversidade de casos e inserção em redes assistenciais resolutivas.”
Segundo Morales, que também é membro da Academia Nacional de Medicina, qualquer projeto que ignore estes preceitos estará fadado ao fracasso por contribuir para o enfraquecimento de uma etapa tão essencial da formação médica, como a residência. “Interiorizar [o ensino], portanto, deve significar mais que deslocar geograficamente, é necessário assegurar qualidade pedagógica, suporte institucional e excelência clínica”, complementa.
Programas federais
Já no dia 30 de maio, a Medida Provisória 1.301 institui o Programa Agora Tem Especialistas, de adesão por estabelecimentos hospitalares privados, com ou sem fins lucrativos. Entre os objetivos listados estão qualificar e diversificar as ações e os serviços de Saúde à população; ampliar a oferta de leitos hospitalares e demais serviços de Saúde para assistência à população; e diminuir o tempo de espera para a realização de consultas, procedimentos, exames e demais ações e serviços de atenção especializada à Saúde.
O programa, que estava paralisado há mais de um ano, sem apresentar resultados efetivos, foi relançado no intuito de alavancar a chamada “vitrine da Saúde” do governo petista. Com vigência prevista até 31 de dezembro de 2030, será implementado mediante atendimentos médico-hospitalares realizados pelos estabelecimentos hospitalares privados, com ou sem fins lucrativos, à população, de acordo com as regras e os princípios do SUS.
Também prevê o provimento e a formação de especialistas, em um total de 3.500 profissionais, sendo + 500 por meio de edital do projeto Mais Médicos Especialistas, com oferta de vagas para os médicos já especialistas, para atuação na rede pública a partir de setembro deste ano; e + 3.000 novas bolsas de residência médica para a formação de especialistas em áreas prioritárias, prevendo novos programas de residências em parceria com a Associação Médica Brasileira, com previsão de edital para setembro de 2025 e formação destes novos especialistas a partir de 2028.
De acordo com o Ministério, 205 instituições já demonstraram interesse para 628 novos programas, sendo que a prioridade será Amazônia Legal, Nordeste e regiões com especialistas abaixo da média nacional. As seis áreas prioritárias, por sua vez, são Oncologia, Ginecologia, Cardiologia, Cirurgia Geral, Anestesiologia e apoio diagnóstico.
Por conta disso, no dia 10 de junho, foi publicada a Portaria 7.177, dispondo sobre o Projeto Mais Médicos Especialistas, como parte das ações do Programa Agora Tem Especialistas. O presidente da AMB, César Eduardo Fernandes, participou da entrevista coletiva à imprensa para lançamento dos projetos.
“Não se pode negar que temos uma gravíssima crise no atendimento especializado, apontada por todos os indicadores de Saúde que se tem conhecimento, portanto, o Ministério da Saúde tem que construir políticas de Saúde que visem reduzir as filas e oferecer a jornada completa do atendimento especializado”, afirmou Fernandes.
O presidente da AMB ainda disse ter gostado muito quando ouviu, na posse do ministro da Saúde, Alexandre Padilha, que ele não iria abrir mão de qualidade e que não iria atropelar aquilo que está consagrado no que diz respeito à formação de especialistas, que demora um tempo longo.
E complementou: “É nossa obrigação contribuir com o Governo de maneira crítica e independente. E se algum direcionamento merecer um reparo nosso, iremos comunicar internamente o Ministério, sem fazer barulho por outros canais. Me parece que o que está sendo proposto aqui, está na direção correta, e espero que a Comissão Nacional de Residência Médica coloque o sarrafo no patamar em que ele deve estar para qualificação da residência”.
Excelência na formação
“Temos receio de que também haja uma abertura indiscriminada de residências médicas. Apesar de estar escrito no edital divulgado pelo Ministério da Saúde que elas ficarão em locais com estrutura, são hospitais pequenos, com movimento menor e, seguramente, com instalações hospitalares não adequadas à formação de um especialista que necessita de infraestrutura, corpo docente qualificado e um hospital que tenha tradição na formação médica”, argumenta Antonio Gonçalves.
Marcelo Morales corrobora com o posicionamento, relembrando que a consequência da expansão desenfreada de cursos médicos – a maior parte deles sem critérios técnicos necessários – culminou na mercantilização do setor, fazendo com que a Medicina passasse a ser vista como oportunidade de negócio e não um compromisso com a Saúde da população.
“Reproduzir este modelo na pós-graduação médica, com a proliferação de programas de residência em contextos com baixa complexidade assistencial, carência de preceptores capacitados e ausência de projeto pedagógico consistente representa uma ameaça à formação médica e, em última instância, à segurança do paciente. A residência não deve ser tratada como política compensatória ou paliativa, mas como eixo estruturante da competência médica especializada”, argumenta.
Ainda de acordo com o membro da ANM, a melhoria da educação médica no Brasil depende de um conjunto articulado de diferentes políticas públicas que se dividem entre a suspensão da abertura de novos cursos de Medicina; a avaliação periódica das instituições de ensino já existentes; a implementação do Exame Nacional de Proficiência Médica; o reforço da residência médica como etapa obrigatória na formação; e a integração com o Sistema Único de Saúde.
Ele também acrescenta de que maneira é possível preservar a excelência da residência médica: “É imperativo assegurar padrões nacionais de acreditação, com base em critérios de infraestrutura, densidade clínica e supervisão docente. A valorização do preceptor com formação pedagógica continuada, remuneração digna e reconhecimento institucional é indispensável. Além disso, a residência precisa estar inserida em ecossistemas de cuidado integral, com vínculos acadêmicos consistentes e responsabilização coletiva pela formação do futuro especialista. Ela deve permanecer como um rito de passagem pedagógico-clínico, em que conhecimento se transforma em sabedoria aplicada ao cuidado humano.”
O presidente da APM reforça que a entidade segue atuante em relação a projetos que não contemplem os melhores interesses dos médicos e que possam prejudicar a formação profissional. “Eu sempre digo que competência não se presume, se afere. Esta é a posição da APM e creio que seja da grande maioria das entidades médicas. Estamos fazendo o possível para preservar a prática da boa Medicina e da boa assistência à população”, finaliza.
Fake News
No dia 2 de junho, circulou uma notícia falsa pela internet, sobre uma suposta proposta do Ministério da Saúde para a criação de cursos relâmpago de formação de especialistas, com duração entre seis meses e um ano.
“O Ministério da Saúde reconhece a trajetória de formação de especialistas por meio da Comissão Nacional de Residência Médica, que é o padrão ouro da formação, e do título da Associação Médica Brasileira. São os caminhos consolidados pela Comissão Mista de Especialidades que queremos valorizar. Vamos continuar investindo na especialização e, ao mesmo tempo, buscar estratégias para prover especialistas reconhecidos por esses caminhos para os serviços do SUS”, destacou o secretário de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde, do Ministério da Saúde, Felipe Proenço, na nota que desmentia a informação.
Publicado na edição 750 (Maio/Junho de 2025) da Revista da APM