Lançado pelo Governo Federal em julho de 2013, o programa Mais Médicos (Lei 12.871/2013) tinha como principal objetivo reduzir a carência de médicos nas regiões mais afastadas do País, fortalecendo os cuidados da atenção primária e garantindo atendimento à população. À época, o Brasil tinha 388 mil médico em atividade, 2 a cada mil habitantes, segundo a Demografia Médica 2013 – sendo a taxa de 4,09 no Distrito Federal, de 3,62 no Rio de Janeiro e de 2,64 em São Paulo, versus 0,71 no Maranhão, 0,84 no Pará e 0,95 no Amapá.
De acordo com dados do Painel do Conselho Federal de Medicina relativos a janeiro de 2024, o Brasil contava com mais de 598 mil médicos em atividade no território nacional – um equivalente de 2,81 médicos a cada mil habitantes. Isso coloca o País ao lado de algumas das principais nações no mundo, como Estados Unidos, China e Canadá e poderia ser visto como algo benéfico, não fossem a má distribuição dos profissionais e a má qualidade na formação.
Quase 12 anos após o lançamento do Mais Médicos, continuamos com as disparidades na distribuição de médicos pelo território brasileiro, com 6,3 profissionais por mil habitantes no Distrito Federal, 4,3 no Rio de Janeiro e 3,7 em São Paulo, versus 1,3 no Maranhão, 1,4 no Pará e 1,5 no Amapá.
Dados do Painel da Educação Médica que analisou os 5.359 municípios que contam com, pelo menos, um médico, mostram que 4.211 deles (78,58%) possuem apenas 1,7 médico por mil habitantes – este é o menor índice já registrado pelos países participantes da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
Além disso, estudo publicado por economistas da Universidade de Oxford, chamado “Mais Médicos, melhor Saúde?”, aponta que o programa não teve grande impacto no quesito Saúde da população, tampouco na mortalidade ou nas hospitalizações.
Estratégias equivocadas
Para cumprir os objetivos, o Mais Médicos lançou mão de duas estratégias principais, sendo a primeira delas a contratação de médicos para trabalhar nos locais de suposto vazio assistencial – uma vez que houve centenas de denúncias sobre a demissão de médicos por Prefeituras de todo o País, que os trocaram por profissionais do programa que era custeado pelo Governo Federal para economizar recursos, e não melhorar a assistência à população.
Além de não resolver o problema da distribuição dos médicos, como observamos com as estatísticas anteriores, a medida culminou com a vinda de milhares de profissionais estrangeiros sem comprovar a formação, especialmente cubanos, para atender a população brasileira mais vulnerável. Muitos brasileiros formados no exterior, sobretudo em faculdades nas fronteiras com a Bolívia e o Paraguai, também se aproveitaram do programa para trabalhar no Brasil sem comprovar a qualificação.
E os pacientes foram os mais prejudicados, uma vez que as estatísticas do Revalida (Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos) são assustadoras. Na segunda edição de 2023, a taxa de aprovados foi de apenas 1,82% entre os mais de 9 mil inscritos. E no melhor desempenho da prova, em 2015, apenas um terço (37,17) dos formados no exterior conseguiu comprovar que tinha capacidade para trabalhar no Brasil.
O diretor adjunto de Defesa Profissional da Associação Paulista de Medicina, Marun David Cury, reforça o posicionamento da entidade de que, para oferecer Saúde de qualidade à população, é preciso, inicialmente, ter profissionais habilitados para tal. “Não pode um médico que foi reprovado no Revalida ser colocado na linha de frente para atender a população brasileira que, pela Constituição, deve receber Saúde e Educação de qualidade pelo Estado.”
A segunda estratégia do Mais Médicos, ainda mais desastrosa, foi a ampliação do número de vagas de graduação em Medicina. De acordo com o site Escolas Médicas do Brasil, desde o lançamento do programa, foram abertas 153 faculdades de Medicina no País, sendo 102 delas privadas. Isso significa que 40,8% do total de 375 escolas médicas contabilizadas pelo portal até 2023 foram criadas em 10 anos. Isso sem contar a ampliação de vagas em cursos já existentes.
Com a intenção de abrir faculdades de Medicina e supostamente levar atendimento a locais onde não havia muitos médicos – o que não ocorreu exatamente na prática, pois grandes cidades também puderam ter novas faculdades e vagas -, o programa Mais Médicos permitiu a ascensão de um mercado extremamente lucrativo, o de escolas médicas privadas, dominado atualmente por grandes grupos educacionais, que são importantes financiadores de campanhas políticas.
Os resultados são desastrosos para a qualidade dos médicos que estão sendo formados, já que essas faculdades não possuem estrutura adequada para o ensino médico, especialmente cenário para prática e professores – já que não há o tempo necessário para a qualificação, levando em conta que, ao todo, a formação em Medicina, englobando graduação, residência e especialização (mestrado ou doutorado), costuma levar entre dez e 12 anos, em média.
“Formar mais médicos, e não melhores médicos, apenas levará ao declínio da qualidade do atendimento à população. Um médico com formação ruim onera o serviço de Saúde como um todo, pois pode demorar mais para chegar a um diagnóstico e até mesmo solicitar exames desnecessários”, enfatiza o presidente da APM, Antonio José Gonçalves.
Alternativas
Uma alternativa promissora para corrigir a abertura desenfreada de vagas de Medicina é o Exame Nacional de Proficiência em Medicina, cujo projeto de autoria do senador astronauta Marcos Pontes está em tramitação acelerada no Congresso. Após aprovado, possibilitará que apenas os profissionais que comprovarem ter os conhecimentos mínimos necessários poderão obter registro e atender a população.
No caso da interiorização dos médicos, a melhor opção ainda é a Carreira de Estado, semelhante à do Poder Judiciário – na qual os profissionais iniciariam em cidades menores e poderiam ir migrando para o grandes centros conforme houvesse disponibilidade e interesse dos mesmos -, alinhada a investimentos na estrutura do SUS em todo o País.
“O Mais Médicos é um programa eleitoreiro e não de Estado. Estamos gastando milhões para um resultado pífio. Acho que se você quer, realmente, cumprir a Constituição e oferecer assistência para a população, tem que ser de qualidade, não com um profissional mal orientado, que não vai resolver o problema de Saúde de determinada região. Só com o estetoscópio o médico não vai conseguir fazer isso. Acho que precisamos ter uma visão mais crítica e verdadeira da situação”, finaliza Marun.
*Matéria publicada na Revista da APM – nº 748, edição Janeiro/Fevereiro de 2025