Linamara Battistella: uma vida dedicada à Saúde pública

A médica ajudou a criar a Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência e foi a idealizadora da Rede de Reabilitação Lucy Montoro

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Linamara Battistella teve uma infância e adolescência cercadas de afeto e uma casa sempre cheia. Sua mãe vinha de uma grande família mineira e seu pai era do interior de São Paulo, o que fazia com que a casa da família recebesse muitas visitas. Neste ambiente, Linamara cresceu vendo familiares e amigos que vinham de longe para consultas médicas ou cirurgias na capital paulista. Muitas vezes, sua mãe os acompanhava nessas consultas.

Antes mesmo de decidir seguir a carreira médica, sua vida já estava conectada à Saúde pública. Sua mãe, que era professora, costumava levar ao Instituto de Infectologia Emílio Ribas mães e crianças que vinham em busca de tratamento para uma doença que assustava o País na época, a poliomielite.

Com emoção, em entrevista à Revista da APM, ela se recorda de ter nascido na década em que a doença afetava uma parcela significativa da população e, ao longo de sua vida, conviveu com amigos que tinham sequelas da pólio.

Formação

Linamara Battistella cursou Medicina na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), em Sorocaba, e concluiu a graduação em 1974. Inicialmente, seus pais desejavam que ela estudasse em uma instituição em São Paulo, pela proximidade e porque uma de suas duas irmãs havia ingressado na Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (FOUSP). No entanto, ela gostava de estudar no interior e até hoje cultiva gratidão pela instituição que a formou médica.

Entre suas influências acadêmicas, destaca-se o professor Benjamin Schmidt, de Pediatria da PUC-SP, que teve um papel fundamental em sua trajetória. “Ele foi um professor e pediatra brilhante, que nos levava para as periferias para medir e pesar crianças”, relembra. A médica acredita que esta experiência foi um dos fatores que a levaram a desenvolver maior sensibilidade e a humanizar o cuidado com seus pacientes.

Durante esses atendimentos nas periferias, Linamara se deparou com uma realidade muito diferente da sua. Aos poucos, percebeu a falta de conhecimento e orientação entre as populações em situação de vulnerabilidade, especialmente em relação à Saúde. Ela observava que as pessoas não se alimentavam bem e não tinham acesso a uma higiene adequada, passando a ser uma de suas maiores preocupações.

Após se formar, iniciou a residência em Medicina Física e Reabilitação no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (HC/ FMUSP). No HC, construiu sua carreira e permanece até hoje. “Ainda estou trabalhando lá e gosto do que faço. Aos poucos, começamos a nos organizar como sociedade, realizando congressos e cursos. O HC sempre foi um local de aprendizado e um ponto de grandes oportunidades. Profissionais de todo o mundo se conectam com ele”, destaca.

Saúde pública

O Hospital das Clínicas foi fundado em 1915 e, até a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988, era uma das poucas referências em Saúde pública em São Paulo. Apesar de ser um serviço destinado a atender toda a população de forma igualitária, a médica conta que havia distinções entre os pacientes. “Certo dia, perguntei o motivo de alguns terem códigos diferentes nas fichas e me disseram que ali ‘atendiam pessoas de altíssimo nível’ e era necessário ‘distinguir os indigentes’. Fiquei indignada com aquilo”, relata.

Durante o processo de criação do SUS, Linamara Battistella participou ativamente das reuniões e discussões. Contudo, para ela, que ainda era iniciante na Medicina, aquele projeto parecia distante de se concretizar. Além disso, o estado de São Paulo já possuía um sistema que atendia a população de forma razoável, apesar da necessidade de aprimoramento e expansão.

Com o passar do tempo, ela percebeu que o SUS seria a maneira mais eficaz de atender a sociedade como um todo. “Quando você é jovem, não consegue entender plenamente a dor do outro. Com o tempo, percebi que atendíamos os pacientes e eles não tinham onde buscar os remédios necessários ou precisavam de exames que só estavam disponíveis no hospital, longe de suas cidades. Entendi que havia algo errado, mas não sabia exatamente o que.”

Ela acredita que o SUS deu poder ao usuário, o que considera crucial. “Os sistemas funcionam e se desenvolvem a partir da experiência de quem os utiliza. Precisamos dar voz e valor a essas pessoas”, afirma. Com o tempo, Linamara se aproximou das iniciativas que ajudaram na estruturação do SUS e passou a compreender melhor o sistema público de Saúde.

Segundo ela, o grupo que integrava o Ministério da Saúde na época tinha uma visão avançada sobre questões relacionadas à área, mas pouco conhecimento sobre as necessidades das pessoas com deficiência. Por isso, foi chamada para ajudar a criar a Política Nacional de Saúde da Pessoa Portadora de Deficiência, que, no artigo 23, destaca que “é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios cuidar da Saúde e assistência pública, protegendo e garantindo os direitos das pessoas com deficiência”.

Essa política também assegurou, ao longo da Constituição de 1988, os direitos das pessoas com deficiência em diversos campos, regulamentados pelas Leis 7.853/89, 10.048/00, 10.098/00 e 8.080/90.

Durante o desenvolvimento das portarias, Linamara e sua equipe precisaram se aprofundar no tema. “Foi uma imersão no sistema para entender o que era viável, como escrever e definir parâmetros. Aqui, em São Paulo, essas leis funcionam bem, mas em grande parte do Brasil há uma falta de visão para ir além do que está estabelecido. Hoje sabemos que a reabilitação é eficaz, atende muitas pessoas e tem um custo baixo. O retorno do investimento é altamente favorável”, afirma a fisiatra.

Rede Lucy Montoro

O interesse de Linamara por questões relacionadas à deficiência física surgiu na infância, quando trabalhou em programas televisivos ao lado de figuras conhecidas, o que a sensibilizou para a inclusão e acessibilidade. No entanto, foi no Hospital das Clínicas que sua visão sobre reabilitação se ampliou. “Percebi que pessoas com deficiência não são doentes. Elas precisam de ferramentas, como cadeiras de rodas, para viver plenamente”, explica.

A experiência com pacientes hemofílicos no HC também marcou sua carreira. “Foi ali que desenvolvi o programa de reabilitação para pacientes hemofílicos, o que se tornou minha tese de mestrado”, conta.

Nos anos 2000, sua trajetória deu um novo passo quando foi convidada pelo então secretário de Planejamento de São Paulo, José Serra, a estruturar a Rede de Reabilitação Lucy Montoro, um projeto inovador no atendimento de pessoas com deficiência física no Brasil. A criação da rede foi um marco, oferecendo uma infraestrutura moderna e acessível em diversas regiões do estado de São Paulo.

A Rede Lucy Montoro é referência no uso de tecnologia de ponta, como exoesqueletos para reabilitação, e tem como um de seus pilares o protagonismo do paciente. “Para mudar rapidamente na Saúde, precisamos do paciente ao nosso lado. Ele é o usuário e deve lutar pelos seus direitos”, destaca a médica, reforçando a importância do engajamento dos pacientes na formulação de políticas.

Com a visão de que reabilitação não se trata apenas de tratamento médico, mas de uma transformação na forma como a sociedade enxerga a deficiência, Linamara segue à frente de um projeto que impacta vidas e desafia barreiras. Como ela mesma resume, “mudamos a história da reabilitação, mas, mais importante, mudamos a história de vida das pessoas com deficiência.”

Esse compromisso contínuo com a inovação e a inclusão reflete-se na busca por soluções tecnológicas que tornem o processo de reabilitação mais acessível e eficiente, como o seu sonho de que cada paciente tenha um exoesqueleto em casa. Para a fisiatra, o futuro da Medicina Física e de Reabilitação é promissor, e sua missão de promover uma vida digna para todos segue intacta.

Atualmente, Linamara Battistella é professora Titular de Medicina Física e Reabilitação e coordenadora do programa de residência da especialidade na FMUSP. Ela também atua como diretora do Centro Colaborador da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e como cocoordenadora do Grupo de Desenvolvimento das Diretrizes de Reabilitação Relacionadas à Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS). Além disso, é membro titular da Academia de Medicina de São Paulo e foi a primeira secretária estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo, cargo que ocupou de 2008 a 2018.


Texto: Ryan Felix (sob supervisão de Giovanna Rodrigues)

Foto: Arquivo APM

Publicado na edição 747 (Nov/Dez de 2024) da Revista da APM