Dor Crônica é tema do último Webinar APM do ano

Na última quarta-feira, 23 de novembro, a Associação Paulista de Medicina realizou o seu último webinar de 2022. O tema da edição foi Dor Crônica e reuniu notáveis especialistas

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Na última quarta-feira, 23 de novembro, a Associação Paulista de Medicina realizou o seu último webinar de 2022. O tema da edição foi Dor Crônica e reuniu notáveis especialistas. A sessão foi apresentada pelo 1º vice-presidente da instituição, João Sobreira de Moura Neto, contando com a presidente do Comitê Científico de Dor, Telma Zakka, e o anestesiologista Hazem Adel Ashmawi como moderadores.

O Webinar teve palestras de Cláudia Carneiro de Araújo Palmeira, médica da equipe de controle de Dor da divisão de anestesia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; e Rogério Adas Ayres de Oliveira, neurologista com atuação em Dor, como palestrantes da noite.

De acordo com Sobreira, a Associação Paulista de Medicina tem um sério compromisso com a Ciência, por isso, promove importantes atividades que permeiam este tema. “A APM está cumprindo o seu papel de incentivo à área científica, juntamente com a Associação Médica Brasileira, a Defesa Profissional e a interação dos nossos médicos. Por isso, é uma honra recebermos hoje colegas de tanta expressão.”

Problema de saúde pública

Rogério Adas foi responsável por ministrar a primeira apresentação da noite, trazendo o tema “A dor crônica como problema de saúde pública”. Segundo o especialista, são muitos os desafios de um paciente que tem dor crônica e frequenta o universo dos sistemas de Saúde, havendo inúmeras dificuldades no processo. Por isso, seu objetivo foi trazer o ponto de vista de um profissional que atuou em diferentes ambientes.

Para entender os desafios de se lidar com a dor, é necessário, primeiramente, compreender o que ela corresponde em si. Adas relembrou que dor é um fenômeno complexo, multidimensional e protetor, com dimensões sensitivas e emocionais simbólicas, representando diferentes sensações. Ela é eminentemente subjetiva, além de ser um sinalizador de problemas corporais em situações fisiológicas, e o principal sintoma que leva pacientes a buscarem assistência médica.

Por isso, profissionais de todos os cenários acabam encontrando a dor como sintoma, já que generalistas e especialistas dos mais diferentes setores acabam se defrontando com tal questão. Razão que faz a dor ser muito familiar aos médicos, já que transitam bem neste contexto. Todavia, o problema é que, ao se tratar de uma dor crônica, todo o processo tende a ser mais complexo.

“A dor só vira dor no encéfalo, com um conjunto de reações, e é um alarme muito poderoso que foi feito para despertar e evocar comportamentos de defesa. Em condições normais, o sistema se ativa, corrige e a dor arrefece. Mas, em contextos de dor crônica, o processo vai ganhando corpo e existe uma desorganização dessas vias”, explicou o palestrante.

O médico ainda salientou que, na experiência dolorosa, o sistema se organiza em diferentes níveis, de modo que a modulação da dor é um processo importante para entender o quão intrigante é tal experiência e de que maneira irá afetar a prática clínica. Além disso, há também as modulações ascendentes, que se constituem em aliviar uma dor através de uma outra ainda maior.

A questão, é que quando se pensa em dor crônica, as redes moduladoras podem adoecer por conta de fatores ambientais, posturas inadequadas e expressores crônicos típicos de ambientes sociais desfavoráveis. As redes moduladoras descendentes, que são, na maioria das vezes, neurotransmissores que modulam a dor e várias outras redes complexas, é que articulam a experiência dolorosa em paralelo.

Sendo assim, chega a ser intuitivo que a dor venha a afetar o sono, cause irritações, dificulte a concentração ou colabore para o desenvolvimento de quadros de depressão e ansiedade, causando notável perda na qualidade de vida do paciente. O grande dilema é que, quando a dor não passa, ela acaba cronificando – a literatura entende que uma dor crônica é um processo que o paciente já lida há três meses ou mais.

Manifestação da Dor

Desta maneira, existe uma mudança estrutural do cérebro, junto de uma atrofia cortical de estruturas frontais, temporais e áreas talâmicas. Há ainda uma reorganização sináptica, que é uma rede de circuito integrada que se readapta e pode adoecer.

Por isso, é fundamental entender que a prevalência de dor crônica no mundo é elevada. Adas salientou que em análises mais abertas é sinalizado que 40% da população pode ter condições dolorosas crônicas. De acordo com uma estatística americana, 20% sofrem com esta conjuntura, sendo que 7,4% são dores de elevado impacto, existindo um predomínio no sexo feminino por diferentes razões biológicas.

As principais condições dolorosas se manifestam através de dores na coluna vertebral, na lombar, cervical, por osteoatrite de joelho e de quadril, além das cefaleias, cefaleias tensionais e dores de cabeça. Com impacto nos gastos associados – diretos ou indiretos -, estimando-se que 600 bilhões de dólares são gastos por ano, aproximadamente o valor de todos os gastos com doença cardiovascular e câncer juntos, representando um grande impacto socioeconômico.

No Brasil, a prevalência também é significativa: em São Paulo, o estudo epidemiológico é de 28,7%; em Salvador, 41%; além de haver um estudo de Londrina (PR) indicando que em idosos, a prevalência de dor crônica está presente em mais de 60% dos pacientes, predominantemente em mulheres, afetando majoritariamente membros inferiores.

“Existe uma evidência epidemiológica que as dores estão ficando mais comuns. Está havendo um aumento na prevalência mundial em todos os grupos etários. Algumas das causas têm sido especuladas, outras têm sido mais bem definidas pela literatura como novos hábitos de vida, estressores psicossociais e sedentarismo crescente, acompanhadas de mudanças do padrão de exposição luminosa, ruído e excesso de informações. São gravíssimos problemas de saúde pública e um desafio às políticas de Saúde”, destacou o especialista.

O neurologista também salientou que, durante a faculdade de Medicina, os estudantes são treinados para fazerem o tratamento pautado na etiologia da doença. Acontece que, ao se tratar de dor, os mecanismos podem não ser muito claros, tendo que, assim, pautar-se por sinais e sintomas. Não obstante, pode haver também paciente com a mesma doença, mas com manifestações clínicas diferentes. Por isso, no mundo da dor é preciso transitar no cenário com uma cuidadosa análise de sinais e sintomas para poder escolher as melhores opções de tratamento.

“Vamos pegar a fibromialgia, o representante mais emblemático do grupo. Pacientes com esta condição têm uma gama de sintomas subjetivos de difícil entendimento, como dores musculares, formigamentos, fraqueza, insônia, fadiga e dificuldade de concentração, entre outros. O que faz desta síndrome clínica o terror de muitos médicos, já que os pacientes trazem uma lista infinita de causas e o médico acaba não tendo elementos de análise dos sintomas. É um verdadeiro desafio. A fibromialgia pode vir associada com uma série de outras doenças que pegam as mais diferentes especialidades”, esclareceu.

Estratégias

Analisando a situação, é preciso definir as estratégias de tratamento. Por exemplo, quando se fala em remédio, é necessário entender que em cada umas das modalidades, eles vão desenvolver uma importância diferente. Ou seja, na dor neuropática, os remédios são importantes, porém, quando se fala nas dores nociplásticas, como é o caso da fibromialgia, os medicamentos terão uma importância menor. Por isso que, ao falar de remédio, o tipo de dor irá interferir diretamente na escolha.  

Também é válido relembrar que lidar com casos de dor terá impacto financeiro, principalmente no atual modelo, com altas chances de ineficiência. Os pacientes poderão não ser bem atendidos, há excesso de exames, cirurgias desnecessárias e procedimentos que fazem mal para o paciente, além de trazer custos elevadíssimos.

“Os recursos, além de escassos, são gastos nos locais errados e isso é uma das realidades nos sistemas de Saúde – tanto no público, quanto no privado – porque para tratar contextos de dor crônica que envolvam terapias multimodais, temos que ir para o tratamento centrado no paciente. William Osler, que estruturou as primeiras residências médicas, já falava que ‘o bom médico trata a doença e o grande médico trata o paciente’. Então, essa é uma questão central quando se fala de atendimento ao paciente com dor em uma perspectiva clínica”, manifestou Adas.

Para o especialista, a relação médico-paciente, por si só, é terapêutica. Por este motivo, o olhar do tratamento de um paciente com dor crônica devia partir de todos os médicos, da formação geral e do entendimento do processo. É preciso entender que, em muitas situações, não será possível resolver todos os problemas, já que um paciente de dor crônica não irá zerar a sua condição, por isso, deve haver uma parceria, de modo que tenha um alívio e possa contar com alguém que o oriente neste processo.

Há uma demanda por educação em dor interdisciplinar para profissionais de Saúde. O médico precisa ouvir outros especialistas, como fisioterapeutas e enfermeiros, nos diferentes níveis de complexidade, pois existe uma enorme carência de centros de atendimento interdisciplinares em todos os níveis de atenção à saúde, no SUS e na Medicina suplementar.

Contudo, há iniciativas muito interessantes, como a liga de dor dos acadêmicos da Faculdade de Medicina da USP, cujo modelo foi reproduzido em muitas faculdades, ajudando a melhorar o cenário; a existência de comitês de dor, como o da Associação Paulista de Medicina, que prestam serviços importantes à população médica; de grupos de dor hospitalar; e de programas de acreditação; entre outras iniciativas que geram melhora na qualidade assistencial.

“Faltam políticas que contemplem o cuidado com a dor crônica e o uso racional dos meios diagnósticos complementares. Para o médico atender bem, precisa estar bem formado, bem-intencionado e ter uma condição de trabalho boa. O binômio médico-paciente é a razão de existir da Medicina, que no meu entendimento, tem essas fragilidades na questão da dor crônica. Temos o Comitê de Dor na APM há quase 25 anos e estamos procurando colaborar nesse cenário, com educação médica qualificada”, finalizou o neurologista.

Opioides

Em seguida, Cláudia Palmeira deu continuidade às apresentações, falando sobre o tema “A crise do opioide no tratamento da dor crônica”. De acordo com a especialista, tanto a dor crônica quanto a doença por abuso de opioides correspondem a uma situação complexa e estão interconectadas. Os opioides, que são medicamentos reconhecidos como analgésicos, podem ser utilizados no pós-operatório, em dores inflamatórias agudas e em casos crônicos. No entanto, o uso prolongado pode levar a alterações celulares consideráveis, que se categorizam como tolerância, dependência e adição.

Sendo assim, o opioide atua no organismo levando a alterações que modulam os diferentes estados motivacionais e afetivos – o que se entende como o termo de neuroplasticidade, que age nos centros de recompensa do cérebro e criam um padrão de memória com efeitos de bem-estar e calmaria. Ao operar nesses centros, o opioide leva à liberação de dopamina e, por causar sensações agradáveis a quem o consome, podem ocasionar o desenvolvimento da dependência.

“Sabemos que existe uma interconexão das vias neurais, que é uma área importante do processamento da informação dolorosa, se conectando com as áreas da recompensa. Enquanto profissionais, devemos observar a riqueza de receptores opioides, porque muitas vezes há médicos da Dor que prescrevem sem essa noção, de que o opioide vai influenciar, por exemplo, nos sistemas dopaminérgicos”, detalhou a palestrante.

Neste sentido, é fundamental destacar que tolerância, dependência e adição não são sinônimos, e entender o que cada um dos termos significa. A tolerância é definida por um estado de adaptação à exposição contínua; a dependência, por sua vez, corresponde ao estado de adaptação ao fármaco ou substância, de modo que, quando o paciente tem interrupção, sofre abstinência; já a adição é uma doença neurobiológica crônica, com fatores genéticos, psicossociais e ambientais, que afeta de 2% a 9% dos pacientes em uso contínuo de opioides, causando desejo, ânsia, paranoia e falta de controle.

Ela relatou que há casos de pacientes, tanto em hospitais públicos quanto privados, que ao desenvolverem a adição, passam a ir para o pronto-socorro por, pelo menos, uma vez por mês a fim de receberem o opioide, simulando quadros de dor para poderem consumir a substância desejada. Além disso, esses pacientes também têm tendência a fazerem uma grande rotatividade de médicos de Dor, relatando quadros de muito difícil controle e, assim, solicitando o uso de medicamentos como morfina, por exemplo.

Fatores de risco

Ao analisar os fatores de risco ao uso de opioides, é preciso considerar algumas características principais, como idade jovem; pacientes que praticam esportes radicais e têm alguma situação de trauma em que estarão expostos ao consumo das substâncias; dores crônicas pós-trauma; pacientes em que são prescritas doses altas dos opioides; casos em que há antecedentes de uso de substâncias ilícitas; quadros de depressão, ansiedade ou doença psiquiátrica; uso crônico de psicotrópicos; dependência de tabaco; histórico familiar de vício; família disfuncional; e situações de pessoas que lidam com altos índices de estresse no dia a dia.

“O diagnóstico preciso não é fácil de ser estabelecido, é preciso ter experiência. Eu trouxe aqui um artigo recente sobre como identificar os pacientes com risco, que têm dor e que vão iniciar com os opioides. Há variantes de que qualquer transtorno de personalidade já seja um sinal, como aqueles pacientes que têm uma mudança de humor repentina, por exemplo. Precisamos entender o histórico e se o paciente já tem algum transtorno por opioide, porque qualquer quadro de dor é de difícil controle”, indicou a especialista.

Para controlar tal situação, existem alguns instrumentos que contribuem com o trabalho dos profissionais. Um deles é o teste de urina, que é prático de ser feito e possui uma monitoração contínua, ou seja, será prescrito um opioide para o paciente e se manterá a avaliação. Além disso, a existência do Pain Medication Questionnaire, que está sendo validado para o Brasil, é uma medida eficaz, já que se categoriza como um questionário para diferentes pacientes através de perguntas específicas para entender os seus casos.

Não obstante, a experiência do consultório também é muito importante para auxiliar no tratamento, já que ajudará a entender o contexto familiar do paciente e contribuirá para o médico desenvolver uma relação de confiança e parceria, podendo analisar se há oscilações de humor, necessidade de beber socialmente para ficar mais calmo, se fuma muito – considerando sempre a adolescência como um fator preditivo importante. É preciso manter a dose do opioide na menor possível e associar os adjuvantes, fazendo sempre uma avaliação contínua e observando se o paciente tem condições de fazer intervenções através de outras práticas clínicas, como a fisioterapia, por exemplo, para tentar reduzir o uso do opioide.

“Muita atenção aos pacientes que solicitam aumento na dose do opioide, principalmente por via endovenosa, porque significa que eles já têm uma dependência grave e estão se encaminhando para a adição. Nos critérios de prescrição, o médico deve evitar principalmente a morfina endovenosa e jamais suspender abruptamente o opioide, para evitar uma crise grave de abstinência. A memória do bem-estar causado pelo opioide é muito significativa, e se esse paciente tem uma queda nos níveis plasmáticos, o receptor fica menos ocupado e isso pode ser muito perigoso. Então, muito cuidado em relação a essa suspensão, pois podemos achar que estamos fazendo o bem, mas não estamos”, manifestou a médica.

Para a especialista, também é preciso associar adjuvantes e, de preferência, solicitar a participação de outros especialistas no tratamento, tendo uma relação clara e firme com o paciente e com a família a respeito de tudo aquilo que está sendo requerido no tratamento. Na alta do paciente, é fundamental pensar em formas de manter o tratamento substituto e relembrar que os receptores precisam se manter ocupados. Caso contrário, haverá fissura e o paciente poderá retornar para o pronto-socorro, correndo o risco de novamente estar exposto aos opioides.

Segurança

No intuito de preservar a segurança, os profissionais devem sempre registrar no prontuário todas as orientações feitas, porque muitas vezes há casos de pacientes que são internados e acabam acusando os médicos de não terem sido bem tratados. A palestrante também demonstrou que é preciso manter em mente que o insucesso faz parte do processo e do resultado, já que os pacientes que estão sendo tratados têm todas aquelas características.

“Nesses casos, muitas vezes os residentes me perguntam ‘Então podemos desistir?’, e eu digo que jamais. Se tivermos um conhecimento adequado disso, se soubermos como manter esse receptor, seja lá como for, se conseguirmos o mínimo de vínculo com esse paciente, já ajudaremos. Então, eu diria que é produzir menos danos, é se sentir mais significativo nisso que eu sei que é uma situação de difícil sucesso, um caso grave, mas que vou conseguir manejar da melhor forma possível, seguindo o protocolo”, finalizou a especialista.

No encerramento, Sobreira relembrou que esta foi a última edição do Webinar APM este ano, que retornará em 2023 trazendo novos assuntos muito importantes para a classe médica. “Essas aulas deveriam estar como básicas nas grades de todas as escolas de Medicina. A dor é abrangente de várias especialidades, da relação médico-paciente, como centro da relação entre eles. É um assunto inesgotável, por isso, parabenizo os doutores pelas brilhantes aulas.”

Fotos: Reprodução Webinar APM