Médicos, advogados e defesa do consumidor se unem contra propostas prejudiciais dos planos de saúde

Diversos setores da sociedade demonstram preocupação com propostas das operadoras que prejudicam os pacientes da saúde suplementar

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Mais de 30 entidades são contrárias ao estabelecimento de planos de saúde segmentados – conhecidos como pay-per-view, modulares, customizados, populares ou miniplanos -, que deixam de fora os atendimentos mais caros e doenças frequentes como câncer, problemas cardíacos e tantos outros. Por isso, as instituições estão divulgando um manifesto expondo os possíveis problemas, que foram apresentados à imprensa em uma entrevista coletiva realizada na sede da Associação Paulista de Medicina (APM), nesta quarta-feira, 30 de outubro.

O presidente da APM, José Luiz Gomes do Amaral, reforçou que a preocupação é de diferentes segmentos da sociedade, como foi possível perceber na coletiva, desde as associações médicas até instituições como o Ministério Público e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo e os órgãos de defesa do consumidor, como o Idec.

“Nós experimentamos dificuldades que precederam a Lei 9.656/1998, no que tange à segurança e à qualidade de atenção à saúde suplementar no nosso País. Essa lei não solucionou todos os problemas, mas marcou o início da busca pela solução. A proposta, agora em voga, pode representar a perda das garantias que conquistamos ao longo do tempo. É necessário, portanto, que toda sociedade esteja atenta a cada palavra que seja incluída em uma proposta de modificação da legislação atual”, introduziu Amaral.

Além dos representantes da APM, falaram à imprensa membros da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), da Academia Brasileira de Neurologia (ABN), da Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo (Sogesp), da Associação Brasileira de Mulheres Médicas (ABMM), da Academia de Medicina de São Paulo, da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, do Ministério Público de São Paulo (MP/SP) e do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

As propostas de alteração que a Frente se refere estão sendo aventadas pela Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), que representa 15 grupos de operadoras de planos privados de assistência à saúde. Durante evento da Federação no último dia 24 de outubro, foi apresentado um texto que altera a Lei 9.656/1998 em pontos importantes.

Basicamente, os planos propõem: desregulamentação da legislação; expansão do mercado de planos de saúde; redução das coberturas e atendimentos; liberação de reajustes de mensalidades; inversão do sistema do ressarcimento ao Sistema Único de Saúde; interferência na autonomia dos médicos; e alívio às multas estabelecidas contra as operadoras.

Na avaliação de Marun David Cury, diretor de Defesa Profissional da APM, as operadoras entendem que o sistema está exaurido, sem recursos, e que parte da população poderia ter assistência com planos mais acessíveis, mas argumenta: “A grande falha nisso, porém, é elas não discutirem as mudanças com a sociedade. Por isso, convidamos todos os segmentos para essa luta. No Brasil, estamos acostumados a ver as iniciativas serem lançadas e empurradas goela abaixo da população, que tem de se virar”.

Reação
Florisval Meinão, diretor Administrativo da APM, disse que, considerando que a Saúde é um dos temas prioritários para qualquer família, os médicos enxergam com grande preocupação todas as tentativas de se alterar a Lei 9.656/1998. “Ao longo do tempo, sempre tentaram muda-la, introduzindo fatores prejudiciais aos pacientes. Há alguns anos, o mesmo grupo aqui presente se articulou diante da possibilidade da introdução dos ‘planos populares’. Vejo a proposta da FenaSaúde como uma nova roupagem daquilo, contemplando as mesmas alterações que já foram rebatidas pela sociedade naquele momento.”

Além disso, o ex-presidente da Associação qualificou como inaceitável a introdução de limitações nas regras de atendimentos aos pacientes. “A relação entre eles e os médicos é de confiança e transparência. Na medida em que o médico é obrigado a atender sabendo que tem limitações, que não poderá fazer determinado procedimento ou adotar determinada terapêutica, essa relação está totalmente prejudicada”, declarou.

Ana Carolina Navarrete, advogada do Idec, reforçou que o coração da proposta das operadoras é a liberação de planos que não atenderão o paciente na totalidade. “É cruel, surreal e perverso, pois é impossível que a pessoa preveja o futuro e tenha conhecimento dos atendimentos que irá precisar. Isso não está alinhado com o que os Códigos Civil e de Defesa do Consumidor tratam por boa-fé.”

A pesquisadora em Saúde também argumentou que não faz sentido para o médico ter de pensar se irá prescrever “A, B ou C” por conta do contrato do paciente com o plano de saúde. Por esse motivo, entende, mais de 30 entidades estão unidas em uma mobilização plural. Assim, convida todos a fazerem sua adesão à petição pública sobre o tema, disponível no blog www.qualidadesaudesuplementar.com.br, que reúne todas as informações sobre o movimento.

O diretor de Tecnologia da Informação da APM, Antonio Carlos Endrigo, relembrou que as operadoras sempre discursam sobre a importância dos médicos, como atores importantíssimos no setor de Saúde, mas nunca convidam os profissionais para debaterem mudanças dessa natureza. Ele também demonstrou sua preocupação que os atuais planos de cobertura ampla deixem de existir a partir do estabelecimento de planos segmentados, a exemplo do que ocorreu com os planos individuais, que diminuíram muito a partir do crescimento dos coletivos por adesão.

Helio Begliomini, diretor Cultural da Academia de Medicina de São Paulo, relembrou que hoje a dificuldade com as operadoras já é imensa. “Quando se pleiteia um procedimento cirúrgico simples, frequentemente somos obrigados a fazer diversos relatórios para conseguir a autorização. Agora, quando o procedimento tem órtese, prótese ou materiais especiais, a autorização é uma missão quase impossível.”

Que a saúde suplementar tem custo, ninguém nega, o que se discute é a forma sistêmica de pensa-lo. Esse é o argumento de Luiz Fernando Baby Miranda, representante da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Ele mostrou a preocupação da entidade com a discussão feita até o momento, visto que os dados não são apresentados de forma clara para a sociedade, para que todos – não somente operadoras, prestadores e consumidores – possam entender possíveis problemas que o setor enfrenta.

“Quando fazemos um contrato com um plano de saúde, confiamos que no futuro poderemos usá-lo. Quando se trabalha com segmentação, estamos falando de contrato extremamente complexo para a população mais vulnerável compreender. E isso também se volta contra a população idosa, que está em um momento mais frágil”, relatou Miranda.

Impacto no SUS
Além dos evidentes prejuízos que essas mudanças trarão aos médicos e usuários da saúde suplementar, há outra face: o impacto no Sistema Único de Saúde (SUS). Essa questão foi mostrada por Arthur Pinto Filho, promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo especializado em saúde pública. Primeiro, reforçou a importância do SUS: “Quando foi estabelecido, saímos da selvageria e entramos em um processo civilizatório”. No entanto, mostrou, o Sistema vive uma situação delicada, inclusive com os investimentos congelados.

“Disse isso para que se entenda a gravidade da proposta no âmbito do SUS, que será impactado violentamente.” E exemplificou: o projeto fala em cobertura de consultas em clínicas básicas e de diagnóstico e tratamento em ambulatório – ou seja, apenas procedimentos corriqueiros e ligeiros, sem contar com internação.

“Se tiver agravo na situação, o que faz? O que diz essa proposta: ‘Não é mais problema nosso, procure o SUS’. Isso é muito cruel com as pessoas que estão pagando planos de saúde. Se ela é diagnosticada com câncer, também terá de ir ao SUS – mas de maneira muito pior do que quem já estava no sistema. Isso porque não poderá furar a fila, então entrará no fim dela, porém já com a doença diagnosticada”, explicou Pinto Filho.

O promotor também destacou as mudanças que poderão ocorrer no que se refere ao ressarcimento do SUS por parte dos planos de saúde. Atualmente, quando o sistema público atende um cidadão que tem plano de saúde, a operadora tem de devolver o valor gasto. “Após esse mecanismo ser declarado constitucional, as operadoras continuam discutindo o mérito da cobrança e isso se arrasta por anos até que os pagamentos sejam feitos.” Dado do Ministério da Saúde apresentado por ele aos jornalistas estima que os valores questionados na Justiça estavam em R$ 5,6 bilhões em fevereiro de 2018. Enquanto isso, a média de ressarcimento ao SUS, por ano, é de R$ 210 milhões.

Elizabeth Regina Giunco Alexandre, presidente eleita da Associação Brasileira de Mulheres Médicas, completou dizendo que hoje, na prática, já há muita dificuldade para conseguir o ressarcimento dos planos de saúde. “Quando há um questionamento, você tem que ‘conversar’ com um robô e muitas vezes fica sem resposta. Temos dificuldades e é uma confusão tão grande no encaminhamento que, por vezes, acabamos desistindo do ressarcimento dos serviços prestados. Assim, diante do que está sendo apresentado, vemos que as propostas não são boas nem para os pacientes nem para os médicos e o SUS.”

Especialidades
Os representantes das especialidades médicas também demonstraram preocupação com a atuação dos profissionais. Clóvis Francisco Constantino, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria e diretor de Previdência e Mutualismo da APM, disse: “Saúde não tem preço, mas tem custo – que é, inclusive, cada vez maior com os avanços científicos. Quem contrata um plano de saúde, imagina que está tendo esse tipo de oferta abrangente, então estamos em um momento difícil”.

“Os pediatras tratam desde os recém-nascidos até o fim da adolescência, um período em que acompanhamos o desenvolvimento. Nesse momento, as pessoas adoecem frequentemente e também precisam de Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) e tratamentos caros. Então, oferecer planos com apenas o início da cadeia de assistência é absolutamente arriscado, visto que as pessoas evoluem e necessitam frequentemente de cuidados complexos”, continuou Constantino.

Sandro Luiz de Andrade Matas, mebro da Comissão de Exercício Profissional da Academia Brasileira de Neurologia, falou que a entidade está sempre atenta a esse tipo de processo. “A Neurologia trata de muitas doenças que são de alto custo e essenciais para o tratamento das pessoas. Se acabarmos impossibilitados de oferecer diagnóstico e tratamentos, elas irão ao SUS, que já está absolutamente saturado. É obrigação da saúde suplementar absorver o que se propôs a atender”, afirmou.

Maria Rita de Souza Mesquita, vice-presidente da Associação de Obstetrícia e Ginecologia de São Paulo, chamou a atenção para as gestantes que chegarão ao pré-natal sem avaliação prévia. “Quem avaliará se a mulher tem condições adequadas para engravidar, pressão alta ou diabetes? Ninguém, pois não haverá cobertura do plano de saúde para isso. A paciente poderá adquirir complicações no meio da gravidez e ficar sem diagnóstico, orientação e tratamento”, exemplificou.

A ginecologista acrescentou ainda que, se uma gestante desenvolver diabetes ou infecção urinária, por exemplo, pode necessitar de uma internação em UTI. “E aí terei que tratar em ambulatório? Como dar uma assistência de qualidade assim? Essas mudanças prejudicam o atendimento, a relação médico-paciente e as condições de diagnóstico e tratamento. Irão gerar crescimento no índice de mortalidade materna e infantil.”

Retrocesso
Confira os principais retrocessos que a proposta das operadoras trará, a partir de análise conduzida por Lígia Bahia, professor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Marilena Lazzarini, presidente do Conselho Diretor do Idec; e Mário Scheffer, professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

DESREGULAMENTAÇÃO
Abre a possibilidade de comercialização de planos de cobertura restritiva e delimitada

PRAZOS PARA ATENDIMENTO
Operadoras poderão descumprir prazos e acabar com o tempo máximo de espera para atendimento

BARREIRAS DE ACESSO
Ampliará e oficializará mecanismos que impedem que pacientes e médicos tenham liberdade de escolha

DOENTES E IDOSOS
Permitirá que empresas excluam previamente de contratos coletivos pessoas “potencialmente causadoras de despesas com Saúde”

PAGAMENTOS ADICIONAIS
Coparticipação e franquias poderão ser validadas

FIM DA AUTONOMIA
Operadoras ampliarão canais que interferem na autonomia dos profissionais, especialmente no exercício médico

PLANOS INDIVIDUAIS
Prevê comercialização deste modelo condicionando isenção de taxas e descontos às coberturas reduzidas

REAJUSTE DE MENSALIDADES
As operadoras poderão definir reajustes diferenciados conforme região e tipo de plano

RESSARCIMENTO AO SUS
Inversão de papeis, exigindo que o SUS que notifique os planos de que um paciente da rede suplementar foi atendido na rede pública

MULTAS
Prevê perdão de acordo com a capacidade financeira da operadora e estipula teto para multas

Fotos: Marina Bustos