Anemia: descoberta promete levar à cura da doença, aponta estudo da Nature

Sem ela, morremos de asfixia. Sua deficiência causa doenças letais. E o seu uso em excesso e ilegal transforma atletas sem talento e sem caráter em campeões

O que diz a mídia

Sem ela, morremos de asfixia. Sua deficiência causa doenças letais. E o seu uso em excesso e ilegal transforma atletas sem talento e sem caráter em campeões. Ainda assim, a principal origem do hormônio eritropoietina era uma incógnita, um mistério de mais de um século, cuja elucidação é relatada na edição de hoje da revista científica Nature Medicine.
Uma equipe internacional de pesquisa identificou que uma obscura e rara população de células dos rins é a principal usina de eritropoietina do corpo humano. Mais conhecida pela sigla EPO, ela é essencial para a produção das células vermelhas do sangue, os eritrócitos ou hemácias, que transportam o oxigênio. A descoberta abre caminho para o desenvolvimento de novas terapias para a anemia, doenças renais e o câncer.
Já se sabia que a EPO era produzida por células dos rins. Mas a população específica de células que a liberava em grande escala não era bem conhecida, embora esse hormônio tenha sido descoberto há décadas.
A forma sintética de EPO é uma das drogas mais usadas em doping porque aumenta fabulosamente o fôlego e a resistência. O caso mais famoso é o do ciclista americano Lance Armstrong, que ganhou por sete vezes o Tour de France movido a EPO.
O papel da EPO é estimular e controlar a medula óssea na produção de hemácias. A EPO se gruda às células do sangue, e marca aquelas que devem se transformar em hemácias. Ela é incansável. O corpo humano produz de dois milhões a três milhões de hemácias por segundo. Isso representa cerca de um quarto de todas as novas células produzidas pelo corpo a qualquer tempo.
No estudo na Nature Medicine, o cientista Ido Amit, do Instituto Weizmann de Ciência, em Israel, e colegas de instituições na Europa e nos Estados Unidos, descrevem como um grupo de células batizado de Nornas são as verdadeiras fábricas de EPO do corpo humano.
Senhoras do destino Amit conta que chamou essas raras células dos rins de Nornas, em alusão a divindades da mitologia nórdica. As Nornas eram três velhinhas encarregadas de tecer o destino de deuses e seres humanos.
Desdobramentos da descoberta podem de fato mudar o destino de pessoas que sofrem de formas graves de anemia ou têm deficiências renais crônicas. Estima-se que 10% da população mundial têm algum tipo de deficiência renal que leva à anemia.
Atualmente, o único tratamento existente para muitas dessas condições é a EPO sintética. A descoberta abre caminho para mais do que repor o hormônio fazer o próprio organismo passar a produzi-lo com eficiência.
Existem várias drogas que estimulam a produção de EPO. Todas foram baseadas em estudos da resposta do organismo à falta de oxigênio, ou hipoxia. O estudo desses mecanismos deu inclusive a seus descobridores o Prêmio Nobel de Medicine de 2019.
Porém, essas drogas atuam sobre mecanismos que não são completamente conhecidos e a descoberta das Nornas tem potencial de melhorar a eficácia de remédios e abrir novas vias de tratamento.
Uma geração de novas drogas No artigo, Amit compara o possível impacto da identificação das Nornas ao da descoberta das células produtoras de insulina do pâncreas para o tratamento da diabetes.
Outro autor do estudo, Barak Rosenzweig, urologista especializado em câncer do Centro Médico Sheba, em Israel, frisa que a descoberta das células Nornas tem grande aplicação clínica para variadas doenças. Uma delas é o câncer. Não raro, pacientes de câncer recebem infusões de sangue antes de passar por cirurgias para extração de tumores.
Rosenzweig explica que essas infusões podem prejudicar o sistema imunológico e afetar a capacidade do organismo lutar contra o câncer. “A descoberta abre possibilidade de estimular as Nornas do próprio paciente a produzir mais EPO. Isso aumentaria a concentração de hemácias sem atingir o sistema imunológico”, diz o médico.
Chegar até as Nornas não foi simples. Há décadas a ciência perscruta os rins atrás das fábricas de EPO. Desde o século XIX se sabia da conexão entre a contagem de células vermelhas e a concentração de oxigênio. No início do século XX, cientistas franceses propuseram a existência de uma substância que poderia regular o sangue.
Mas o hormônio EPO só foi isolado em 1970 pelo americano Eugene Goldwasser. Isso possibilitou produzir EPO sintético para tratar pessoas com anemia grave.
Super-humanos da vida real Vem dessa época também os primeiros casos de doping com a substância, quando se vislumbrou a possibilidade de aumentar a disponibilidade de oxigênio do sangue a partir de drogas sintéticas.
O potencial esportivo foi despertado pela história do esquiador finlandês Eero Mantyranta. Ele reinou enquanto competiu no esqui cross-country, o esporte que exige maior nível de resistência física, e ganhou sete medalhas em quatro Olimpíadas de inverno consecutivas, entre 1960 e 1972.
Mantyranta bateu recorde sobre recorde. Sua aparência física nada tinha de especial, sequer era um tipo muito atlético. Porém, anos depois, estudos de genômica revelaram que ele tinha uma alteração no gene para EPO que o faziam produzir muito mais hormônio e assim se tornar praticamente incansável. Uma benção para quem compete em esportes que exigem resistência.
Sortudos como Mantyranta são raros. Mas o EPO sintético foi banido, como doping, o que não evitou casos recorrentes, sendo o Lance Armstrong o mais famoso.
Detetives médicos Chegar até as Nornas foi um trabalho de mais de três décadas. Se sabia que a EPO vinha dos rins. Mas de que parte era outra história. Várias células renais foram apontadas como origem do hormônio.
O problema todo é que a EPO não é estocada nas células. Ela é produzida e liberada quando o corpo percebe que precisa de mais oxigênio. Chega e some sem deixar rastros, salientou Roland Wenger, outro autor do estudo. Baseado na Universidade de Zurique, na Suíça, Wenger há 30 anos caça a origem do EPO.
“Por décadas, quase toda célula dos rins foi erroneamente identificada como produtora de EPO”, escreveu Wenger no artigo.
O primeiro passo foi criar camundongos transgênicos cujas células dos rins se tornavam brilhantes e vermelhas quando o hormônio EPO era produzido. Os cientistas descobriram que as Nornas são um subtipo, uma população muito específica de fibroblastos, células que normalmente formam tecido conjuntivo. Já se sabia que fibroblastos estavam envolvidos, mas não que havia uma população extremamente específica deles, a das Nornas.
Foi necessário examinar literalmente milhares de células para identificar algumas poucas Nornas. Num experimento, no meio de 3.000 fibroblastos com EPO, apenas 40 Nornas realmente produziam o hormônio, ressaltou Wenger.
O próximo desafio foi identificar Nornas em seres humanos. Seria preciso comparar células ativas com as de pessoas que tivesse tido hopoxia grave. Isto é, pessoas mortas por falta de oxigênio. Isso foi feito com a doação de amostras de rins de pessoas que morreram por envenenamento por monóxido de carbono, durante um incêndio na Alemanha.
O resultado mostrou que as Nornas humanas tinham as mesmas funções das encontradas nos roedores. Amit destaca que o estudo evidencia a importância da ciência básica e espera que agora se possa aprender ainda mais sobre os mecanismos de ação de um dos hormônios mais fundamentais do corpo humano.

Fonte: O Globo Online.