Herança de dor: psicóloga ensina a enfrentar rastros deixado pelo suicídio

Psicóloga ensina a enfrentar rastros deixados pelo suicídio.

O que diz a mídia

Psicóloga ensina a enfrentar rastros deixados pelo suicídio.

Quando tinha 10 anos, Ka- rina Okajima Fukumit- su descobriu o que era suicídio da pior forma. Chegando da escola, percebeu o silêncio em casa e viu uma porta trancada: a do quarto materno.

Começava ali uma saga que ela e a irmã, dois anos mais velha, precisaram encarar sem qualquer preparo. Foram 18 internações da mãe na UTI depois de tentativas frustradas de se matar, que marcariam a vida da família para sempre.

Hoje com 51 anos e formada em psicologia, Fukumitsu enfrenta outro desafio enorme, o de levantar o véu de silêncio sobre o tema. Como suicidologista, ela ajuda pessoas que vivem o luto por suicídio de um parente ou amigo. Criou uma associação —a Se Tem Vida, Tem Jeito —e implementa ações em escolas marcadas pelo trauma.

— Sempre acreditei que o luto por suicídio é diferente de todos os outros —diz.
A seguir, a especialista explica como funciona a pós- venção, termo para designar o acolhimento desse luto revestido de culpa e tabu.

Amigos e família Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), o ato de um suicida deixa rastros profundos em cinco a seis pessoas no seu entorno. Porém, uma pesquisa da organização americana National Action Alliance for Suicide Prevention traz um número mais impressionante: 115 impactados.

Desses, 53 afirmam quea vida foi interrompida por um curto período. Outras 11 relataram que o ato teve um efeito devastador em sua existência.

Pesquisadores dizem que os próprios enlutados entram nos grupos de vulnerabilidade depois do trauma, por conta de sentimentos de impotência e falta de sentido.

O manto do silêncio Nos círculos sociais daqueles que se matam, a culpa e a vergonha são sentimentos comuns. Há ainda a ocultação. Eles acreditam que não se referir ao ato (às vezes sequer mencionar o nome da vítima) ajuda a driblar o sofrimento. O trabalho de pós- venção vai na direção contrária, de abrir espaços para que os sentimentos apareçam.

— O sofrimento tampona- do provoca um efeito panela de pressão. Um dos antídotos para o luto é a revolta. Costumo perguntar ao enlutado onde está seu poder de indignação para comunicar o que está fazendo mal —afirma.

Outro erro é achar que é possível voltar a ser quem se era antes daquela morte.
Como qualquer evento traumático, o suicídio deixa marcas. E retomar a produtividade para “tapar esse buraco” apenas adia a confrontação dessas chagas.

Relação com transtornos Segundo uma crença difundida, 90% dos casos de suicídio são evitáveis. Para Fukumitsu, esse lugar-comum é um erro de interpretação. A Organização Mundial da Saúde (OMS) diz que uma das formas de se prevenir o ato é ampliar o acesso à saúde, e que grande parte dos suicidas sofre de transtornos mentais. É verdade, mas apenas em parte.

— Há uma relação, e tratar transtornos mentais reduz a chance de alguém tentar o suicídio. Mas dizer que ele é evitável é uma onipotência que cria um sentimento de culpa enorme nos enlutados. Se poderíam ter evitado aquilo, por que não o fizeram? Precisamos tentar evitar simplificações —alerta.

Os quatro Ds A Associação Brasileira de Psicologia lista quatro Ds como as principais causas da tentativa de suicídio: desespero, desamparo, desesperança e depressão.

A frase mais famosa sobre o tema foi cunhada pelo psicólogo americano Edwin Shneidman: “O suicídio é uma solução permanente para um problema temporário”. Fukumitsu gosta de definir o ato como fruto de “um tsuna- mi existencial, o ápice do processo de morrência”. Na sua visão, o quadro é complexo e multifatorial, nem sempre associado a transtornos.

— São processos autodes- trutivos que podem acontecer com qualquer um se não estivermos vigilantes —diz.

Portanto, pensarem eventos como bullying, demissão ou término de relacionamento em termos de “culpados” é reducionista.

Despreparo da saúde Numa das tentativas frustradas da mãe de se matar, a futura psicóloga entreouviu um enfermeiro aconselhar a paciente a “tentar da próxima vez de um jeito mais efetivo” para não dar mais trabalho às equipes.

Depois, já formada, vivia com medo de que um paciente manifestasse esse desejo.
— Eu não tinha recebido nenhuma habilitação na faculdade para conduzir o manejo de uma pessoa em intenso sofrimento existencial, que é como percebo o suicídio. Fui galgando a vida acadêmica para poder hoje coordenar uma pós-graduação em suicidologia. Queria mudar esse cenário —conta.

Estigmas Quando decidiu se especializar em suicidologia, Fukumitsu notou que havia resistência no meio acadêmico.
—Diziam que eu ia mexer num vespeiro, que ninguém queria falar disso —lembra.

Hoje, no seu canal do You- Tube, ela abre espaço para levar a discussão para mais gente, mas dificilmente consegue monetizar os vídeos por conta do tema considerado espinhoso. Os simpósios que promove também não costumam ter patrocínio.

Parte do tabu em torno do tema tem a ver com a ideia consagrada de morte como o único evento das nossas vidas que somos incapazes de controlar, explica: — Todo mundo nasce sabendo que um dia vai morrer. É como se a gente tivesse uma senha, sem a informação de quando ela vai ser chamada. Õ suicida é aquele que fura a fila. Isso provoca muita raiva e indignação.

Grupos de apoio Desde 2019, o Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo, promove encontros de enlutados por suicídio mediados por profissionais de saúde. As sessões acontecem toda última terça-feira do mês, por videoconferência.

Trabalho com escolas

O trabalho da psicóloga hoje inclui a assistência a escolas onde houve episódios de suicídio. Um dos ensinamentos de Fukumitsu é que qualquer iniciativa de eviden ciar a vítima com homenagens deve se enquadrar em um contexto maior de abordagens sobre o luto por qualquer causa. Chamar atenção para aquela morte isoladamente traz o risco de romantizar o ato.

Fonte: O Globo