PERIGO NAS RUAS: Apreensão de fentanil no Brasil acende alerta sobre opioide, potente e letal

Líder entre as mortes causadas por overdose nos Estados Unidos, o opioide sintético fentanil foi apreendido pela primeira vez no Brasil

O que diz a mídia

Líder entre as mortes causadas por overdose nos Estados Unidos, o opioide sintético fentanil foi apreendido pela primeira vez no Brasil na cidade de Cariacica, Espírito Santo, informou o Departamento Especializado em Narcóticos (Denarc) da Polícia Civil do estado nesta semana. A operação, realizada em fevereiro, colheu 31 frascos da droga, um anestésico criado para uso hospitalar — mas que rapidamente ganhou as ruas em países como EUA e Canadá.
A preocupação dos especialistas não é à toa. Segundo a Administração de Repressão às Drogas dos EUA, o fentanil é cerca de 50 vezes mais potente que a heroína e cem vezes mais do que a morfina, fármacos semelhantes desenvolvidos com fins medicinais que passaram a ser utilizados ilegalmente. Nos dois países norte-americanos, o uso é tão frequente que desencadeou uma crise conhecida como “epidemia dos opioides”, responsável por mais de 500 mil mortes nos últimos 20 anos.
De acordo com o Centro de Controle e Prevenção de doenças dos EUA (CDC), somente em 2021, foram aproximadamente 106 mil mortes por overdose no geral no país, um recorde. Destas, cerca de 67% (71 mil) delas foram associadas ao fentanil. Já pela cocaína, para comparação, foram 24 mil vítimas; e pela heroína, menos de 10 mil.
Além disso, as over- doses por fentanil crescem em ritmo acelerado. Enquanto, considerando todas as causas, os eventos dobraram de 2015 para 2021, aqueles ligados ao opioide sintético cresceram 7,5 vezes.
Isso fez com que as overdoses tornassem-se a principal causa de morte evitável entre pessoas de 18 a 45 anos nos EUA, acima de suicídio, acidentes de trânsito e violência armada.
— Essa epidemia de opioides começou há cerca de 20 anos, quando a indústria farmacêutica lançou o OxyContin (nome comercial da oxicodona, um dos primeiros opioides a se popularizar) e inundaram o mercado. Isso aumentou muito o consumo. Depois veio o surgimento dos opioides sintéticos, criados artificialmente em laboratórios, mais poderosos e muito mais fatais —explica o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, diretor da Unidade de Pesquisa de Álcool e Drogas (Uniad) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde também leciona.
Especialistas ouvidos pelo GLOBO explicam que um dos motivos para o aumento no uso dos opioides é o acesso mais fácil, uma vez que não se t rata de uma droga essencialmente ilegal e, por isso, não depende do tráfico. E o que explica a coordenadora científica de anestesiologia da Associação Paulista de Medicina (APM), Claudia Marquez Simões.

PERIGO NAS RUAS

Apreensão de fentanil no Brasil acende alerta sobre opioide, potente e letal — Nós temos opioides naturais, que vêm diretamente de uma planta, principalmente da papoula, mas ao longo do tempo foi se entendendo esse efeito analgésico e a indústria farmacêutica passou a investir em sintetizar moléculas semelhantes e mais potentes. De lá para cá, o fentanil passou a ser muito utilizado nas anestesias. Hoje, se você for ser submetido a um procedimento cirúrgico, a chance de ele ser usado é altíssima—diz a especialista.
Ela explica que isso ocorre porque os fármacos se conectam a receptores específicos do sistema nervoso central que inibem a dor. Porém, esse mesmo mecanismo promove sensações de euforia e de bem-estar, extremamente potentes no caso do fentanil.
— Mas quando se conectam eles também deprimem a respiração e, com isso, podem gerar uma parada respiratória. Num cenário controlado, como o hospitalar, os profissionais estão preparados para lidar com possíveis efeitos adversos, o que não é a realidade do uso ilegal nas ruas —afirma Simões.

ANTÍDOTO

Um desses preparos é o acesso à naloxona, um antagonista de opioide. Trata-se de um medicamento que funciona como uma espécie de antídoto indicado em casos de emergência de overdose pelos opioides. Enquanto no Brasil ela é restrita ao uso médico, nos metrôs de Nova York há até propagandas governamentais pedindo que as pessoas tenham a naloxona como forma de redução de danos.
— Um erro muito grande que acontece lá é a prescrição exagerada dos opioides. Isso porque a dor crônica é uma das principais causas de morbidade e faz com que muitas vezes, em vez de corrigirem as causas, profissionais prescrevam os opioides para aliviar os sintomas. E quanto maior e mais rápido o efeito de uma droga, maior é a chance de a pessoa autoadministrá-la, se viciar e eventualmente ter uma overdose —diz Camila Magalhães, doutora em psiquiatria pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em transtornos relacionados ao uso de drogas.
O fentanil pode ser utilizado de diversa formas: inalado, ingerido em comprimidos, injetado, entre outras. Além disso, é recorrentemente misturado com outros opioides e outras drogas, como a cocaína. Nos EUA, tem se disseminado o uso com a xilazina, um sedativo potente para cavalos, em uma combinação que ficou conhecida como “tranq” e “droga zumbi”, o que preocupa ainda mais os médicos.
O cenário tem, inclusive, levado ao aumento de discussões sobre a descriminalização do uso de drogas para reduzir danos. Em estados americanos como Oregon e Rhode Island, e na província canadense da Colúmbia Britânica, foram implementadas medidas como a criação de centros para o uso supervisionado ou a permissão de posses de determinadas quantidades.
— O grande alerta com a apreensão no Brasil é que ou o país está sendo apenas rota de passagem ou o mercado vai começar a usar o fentanil aqui. Tradicionalmente, o Brasil não tem tido um uso de opioides muito grande —afirma Laranjeira.

NO BRASIL

Embora tenha sido encontrado pela primeira vez sendo comercializado de forma ilegal, o fentanil já está presente e tem usuários no Brasil — ainda que poucos. O psiquiatra Jorge Jaber, especialista em dependência química pela Universidade de Harvard, nos EUA, conta que atendeu em sua clínica cerca de 20 deles nos últimos 15 meses.
—A maioria é da área da saúde. Existem pessoas da área médica que acabam tendo algum problema de saúde e, com acesso ao medicamento e sem tempo para procurar um tratamento, recorrem ao alívio rápido do opioide e se tornando dependente —afirma.
Porém, os especialistas acreditam que ainda é uma incógnita se o fentanil se disseminará aqui como nos EUA. Para alguns, a estabilidade do mercado ilegal de drogas no Brasil e a alta letalidade do opioide —o que eleva o risco de se perder o usuário/cliente — tornam a explosão improvável.
—Praticamente ninguém morre por causa de maconha. O comércio da cocaína conseguiu chegar a uma concentração da droga que é mais raro levar à overdose. Não é interessante para o mercado ilegal a entrada de uma droga mais cara e letal —explica o especialista.
Ainda assim, a chance existe, diz Camila Magalhães.
—Somos um país que com frequência recorre a substâncias psicoativas para conseguir efeitos mais rápidos, como no caso dos remédios para dormir — diz.

Fonte: O Globo / Bernardo Yoneshigue