“Para fazer Medicina é preciso gostar de gente”

Confira o perfil de Eliete Bouskela, primeira mulher eleita presidente da Academia Nacional de Medicina

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Na véspera do Dia Internacional das Mulheres, em 7 de março deste ano, a Academia Nacional de Medicina (ANM) realizou uma cerimônia de posse para oficializar a chegada de Eliete Bouskela à presidência da instituição. Além disso, outro fato histórico foi comemorado: ela foi a primeira mulher a ocupar o cargo em 194 anos de fundação da entidade.

Eliete cursou Medicina na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e concluiu a graduação em 1973. Porém, iniciou sua carreira científica em 1969, no Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, testando soluções de perfusão, em fluxo constante, para a manutenção de coração isolado de mamíferos. Antes de decidir seguir a carreira médica, ela cogitou a possibilidade de cursar Direito, pois sentia curiosidade sobre o que levava as pessoas à vida do crime. “Depois cheguei à conclusão de que eu não precisava começar com mentes doentes, eu poderia começar com mentes um pouco mais saudáveis e resolvi fazer Medicina”, diz, em entrevista à Revista da APM.

A médica afirma que o que a motivou a seguir na profissão foi o desejo de aprender mais sobre como o corpo funcionava, além do fascínio pelo contato com outros seres humanos, por meio de conversas, o que lhe permite contar sobre sua vida e também ouvir o outro.

Após a conclusão da graduação, Eliete decidiu se mudar para os Estados Unidos, onde fez um doutorado experimental trabalhando com morcegos. Ao retornar ao Brasil, começou a trabalhar com pesquisa translacional – área que visa conectar a pesquisa biomédica básica com a inovação em Saúde, gerando produtos, serviços e políticas que beneficiem a população. “São ex perimentos feitos primeiro em animais e depois transacionados para humanos”, explica a especialista.

“Fiquei dez anos no Brasil, mas não tinha dinheiro nenhum para fazer pesquisas aqui, então resolvi ir para a Suécia, onde fiquei sete anos. Quando decidi voltar, comecei a fazer pesquisa clínica”, relembra.

Eliete Bouskela conta que começou a trabalhar com pesquisa clínica em 1994 – antes disso havia estudado apenas os modelos experimentais de doença – quando foi procurada por um aluno interessado em realizar pesquisa na área. “Comecei e gostei, então resolvi que estava na hora de fazer uma reciclagem em Medicina”. Segundo ela, quando o profissional se especializa em uma determinada área, geralmente fica focado naquele campo. “Pensei em voltar a ver Medicina de uma maneira geral, porque eu acredito muito que o paciente deve ser visto assim.”

Nessa época, Bouskela decidiu frequentar a Academia Nacional de Medicina e, de acordo com ela, passou a interagir com bons especialistas e ter contato com quase todas as áreas médicas. Em 2004, foi eleita membro da entidade, posição na qual permaneceu por 20 anos até se tornar presidente.

Além de pesquisadora e presidente da ANM, Eliete atualmente é professora titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); diretora Científica da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ); relata, ainda, que tem “trabalhado muito nas doenças cardiometabólicas, que são obesidade, diabetes e hipertensão”.

Números desiguais

Eliete destaca a baixa representatividade feminina nas estruturas da Medicina, sobretudo na ANM. “Embora a Academia tenha elegido aproximadamente 690 membros em sua história, apenas dez foram mulheres, e sou a primeira presidente mulher em 194 anos”, observa. Apesar disso, ela nunca sentiu discriminação direta por ser mulher, atribuindo isso ao fato de ter começado sua carreira em cadeiras básicas e não ter concorrência direta com médicos praticantes.

De acordo com o Global Gender Gap Index (Índice Global de Disparidade de Gênero), realizado pelo Fórum Econômico Mundial, a participação global de mulheres em cargos de liderança corresponde a 37%. Isso significa que elas ocupam apenas um terço dos cargos de liderança no mundo.

No início do ano, dados apresentados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontaram que a participação de mulheres com 15 anos ou mais no mercado de trabalho foi de 53,3%, enquanto entre os homens a taxa chegou a 73,2% no ano de 2022. Parte disso diz respeito à situação de maior taxa de informalidade das mulheres, com 39,6% contra 37,3% dos homens.

Ela relembra episódios isolados em que sua autoridade foi questionada por ser mulher. “Quando assumi a cadeira de Fisiologia na UERJ, aos 27 anos, algumas pessoas achavam que eu era a secretária e queriam falar com o chefe. Eu dizia: ‘Lamento, mas o chefe da cadeira sou eu. Ou você fala comigo ou não tem outro jeito’”.

A médica ressalta o progresso na presença feminina na Medicina. “Quando eu fiz a graduação, éramos de 10 a 15% de mulheres; hoje somos mais de 50%. Espero que isso não signifique redução de salário e status, porque isso normalmente acontece”, pondera.

Pesquisa realizada pela Medscape entre 2022 e 2023 revelou que a renda dos médicos brasileiros aumentou 16%, mas as mulheres ainda ganham menos da metade que os colegas. O estudo contou com a colaboração de 1.711 médicas e médicos.

Além disso, em 2018, entre mulheres de 25 e 49 anos, o rendimento médio das médicas em atividade no Brasil equivalia a 71,8% do recebido pelos médicos, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), órgão gerenciado pelo IBGE. Nesta faixa etária, as mulheres já representam 53,2% dos profissionais ativos.

Para Eliete, a falta de exemplos femininos em posições de liderança pode desmotivar mulheres a buscarem esses cargos. “Na ANM, todas as mulheres que se candidataram foram eleitas, mas poucas se candidatam, possivelmente devido à baixa representatividade histórica”, argumenta.

Desafios e avanços na Pesquisa Médica

Bouskela aponta a falta de perenidade de recursos como um dos maiores desafios enfrentados pelos pesquisadores brasileiros. “Quando começamos um projeto, precisamos ter a segurança de que continuaremos tendo financiamento. Sem isso, não há como realizar a pesquisa”, explica.

Outro desafio é a escassez de oportunidades para jovens pesquisadores. “Atualmente, não há muito o que oferecer a quem começa a fazer pesquisa. As vagas em universidades que fazem pesquisa são raras, e as universidades privadas, em sua maioria, não realizam este tipo de trabalho”, afirma. Segundo ela, a dificuldade de abrir novas vagas em universidades públicas também contribui para a diminuição do interesse dos estudantes pela pós-graduação.

Para melhorar essa situação, Eliete sugere parcerias com o setor privado. “Em países desenvolvidos, os doutores dividem seu tempo entre o setor privado e universidades. No Brasil, de 80 a 90% dos doutores estão nas universidades. Precisamos criar pontes para abrir mais possibilidades no setor privado”.

O futuro

Para os futuros profissionais da Medicina, a pesquisadora enfatiza a importância de gostar de pessoas. “Não há uma doença, existem doentes. Cada pessoa reage de maneira diferente à sua doença. É crucial ver o paciente como um todo, não em partes”, aconselha. Ela acredita que o papel do médico é ser um parceiro do paciente, ajudando-o a enfrentar seus desafios de Saúde.

Atualmente com 74 anos, a médica não pensa em parar. “Gostaria de continuar trabalhando, dando aula e fazendo pesquisa. E repito: para fazer Medicina, é preciso gostar de gente”.

Texto: Ryan Felix (sob supervisão de Alessandra Sales e Julia Rohrer)  

Publicado na edição 745 Jul/Ago 2024 da Revista da APM