Profissionais despreparados e pacientes desprotegidos

Invasões recorrentes è Medicina reforçam a importância da valorização dos atos privativos

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A obtenção de resultados satisfatórios na Saúde depende de fatores multidisciplinares e do trabalho em conjunto com diversas áreas. O médico, ao lado de fisioterapeutas, enfermeiros, dentistas, farmacêuticos, psicólogos e nutricionistas, entre outros, realiza um trabalho minucioso em prol de seus pacientes para, assim, fornecer um diagnóstico preciso e viabilizar as melhores terapias existentes.

Contudo, quando profissionais não habilitados passam a exercer o trabalho que corresponde exclusivamente à atuação médica, a tendência a ser observada é catastrófica – levando a consequências irreversíveis, sequelas, piora do quadro de saúde e, em determinados casos, ao óbito.

Neste sentido, a mais recente tentativa de invasão à Medicina ocorreu no dia 17 de março, quando foi publicada a Resolução nº 5/2025 do Conselho Federal de Farmácia (CFF), autorizando que farmacêuticos prescrevessem medicamentos. Após ampla movimentação contrária à medida por parte das entidades médicas – em especial a Associação Paulista de Medicina, que foi a principal porta-voz junto à imprensa -, a resolução que entraria em vigor após 30 dias foi suspensa pela Justiça Federal.

Segundo o juiz Alaôr Piacini, do Distrito Federal, responsável pelo anulamento, somente médicos têm as competências necessárias para realizar diagnósticos e receitar remédios. “O balcão de farmácia não é local para se firmar diagnóstico nosológico de uma doença, porque o farmacêutico não tem competência técnica, profissional e legal para tal procedimento”, argumentou.

A decisão do magistrado foi baseada na Lei do Ato Médico (nº 12.842/2013), responsável por assegurar as atividades exercidas exclusivamente por médicos. “Verifica-se da referida lei que somente o médico tem competência legal e formação profissional para diagnosticas e, na sequência, indicar o tratamento terapêutico, após a realização do diagnóstico, processo pelo qual se determina a natureza de uma doença, mediante o estudo de sua origem, evolução, sinais e sintomas manifestos.”

Distinções
A determinação foi de que o Conselho divulgasse com “ampla publicidade” a decisão judicial em seus veículos de comunicação, além da ordem para que a entidade não volte a elaborar uma nova resolução sobre esta pauta, sob pena de multa de R$ 100 mil diários, até R$ 10 milhões.

Apesar da vitória parcial por parte dos médicos neste caso, ainda é necessário se debruçar sobre o tema e reforçar a atenção nos desdobramentos, já que esta não é a primeira vez que o CFF tenta autorizar a prescrição de medicamentos por farmacêuticos – a situação também ocorreu em 2013, quando o CFF tomou a mesma decisão e igualmente enfrentou uma intensa oposição jurídica por conta da invasão ao trabalho dos médicos.

O presidente da Associação Paulista de Medicina, Antonio José Gonçalves, em entrevista à rádio Nova Brasil FM, expressou o seu ponto de vista acerca do tema. “Eu acho que a resolução do Conselho Federal de Farmácia fere o princípio fundamental dos conselhos de Medicina, que é a defesa da população contra a má prática profissional.”

Para o diretor Geral da Comissão Especial de Médicos Jovens da APM, Gabriel Senise, há diferenças marcantes entre o tempo – e o foco – das formações, já que o médico costuma levar ao menos oito anos para se profissionalizar, considerando a graduação e a residência, ao passo que o farmacêutico leva cinco anos de formação acadêmica, e os cursos de especialização da área têm uma duração menor.

“A matriz curricular de Medicina abrange profundamente as áreas biológicas, clínicas e disciplinas de propedêutica. Há forte ênfase em diagnóstico de doenças e condutas terapêuticas. O estudante de Medicina dedica horas ao treinamento prático com pacientes reais, aprendendo a colher história clínica, realizar exame física, interpretar exames complementares e formular diagnósticos diferenciais para, então, instituir um tratamento adequado. Já o currículo de Farmácia tem seu núcleo nas Ciências Farmacêuticas, e embora haja também conteúdo de fisiologia e patologia, o foco está mais no medicamento do que na doença em si”, explica.

Senise destaca que o médico, essencialmente, se forma para diagnosticar e tratar doenças, enquanto a formação do farmacêutico foca em assegurar o uso correto dos medicamentos. “Essas funções são complementares, mas não idênticas. O médico é treinado para decidir o que e como tratar, e o farmacêutico para garantir que o tratamento medicamentoso seja efetivo e seguro, ajustando-o quando necessário em colaboração com a equipe de Saúde.”

Para Antonio Gonçalves, o farmacêutico é um profissional de Saúde extremamente importante para o setor, no entanto, as suas atividades devem ser restritas apenas às aptidões adquiridas na matriz de competência da faculdade. “O farmacêutico pode, e isso ele faz muito bem, orientar qual remédio substituir por um genérico ou medicamento similar, orientar no que diz respeito aos efeitos colaterais e guiar quanto às interações medicamentosas.”

Ele complementa: “Agora, a receita em si não pode ser feita por um farmacêutico, mesmo porque, se você der um remédio para um paciente e de repente mudar o quadro clínico ou o medicamento não funcionar, é preciso reexaminá-lo e, eventualmente, solicitar mais exames e corrigir a rota do tratamento. Isso o farmacêutico não pode fazer.”

Interesses e problemáticas
De acordo com Gabriel Senise, a resolução do Conselho Federal de Farmácia envolve alguns interesses específicos relacionados a movimentos de mercado potencialmente incentivados por setores que visam ganhos financeiros por meio da expansão da atividade farmacêutica.

Isso envolve o interesse das redes de farmácias, que estão ampliando os seus serviços e, desta maneira, elevando o fluxo de clientes e de vendas; o interesse da indústria farmacêutica, por considerar atrativas as medidas que favoreçam o acesso aos medicamentos, já que isso amplia o consumo e, consequentemente, o seu lucro; e o interesse do setor educacional e de serviço farmacêuticos, que vêm crescendo exponencialmente graças às perspectivas de novos campos de atuação – neste caso, de prescrição por parte de profissionais não médicos.

“A discussão sobre permitir que farmacêuticos realizem atendimentos clínicos e prescrição de medicamento não é apenas corporativa ou legal – trata-se, sobretudo, de avaliar impactos na saúde da população. Um ponto levantado pelas entidades médicas e por parte da literatura em Saúde é o risco de erros de diagnósticos e tratamento caso profissionais sem treinamento médico assumam funções clínicas”, expões.

Para o médico, um dos maiores temores diante deste cenário é o mascaramento de doenças graves. “Se um paciente com sintomas potencialmente sérios procurar diretamente a farmácia, há o risco de o quadro não ser adequadamente reconhecido. O farmacêutico, com boa intenção, poderia indicar um medicamento para aliviar o sintoma sem chegar a um diagnóstico de base e isso temporariamente suprimiria os sintomas enquanto a doença de fundo progride.”

Ele frisa os riscos de medicamentos prescritos por farmacêuticos. “Médicos, durante a consulta, costumam avaliar não apenas o sintoma imediato, mas todo o histórico clínico, comorbidades, alergias e possibilidades de interação medicamentosa, antes de definir uma terapia. Se um farmacêutico começa a prescrever de forma fragmentada, podem ocorrer problemas como prescrição inadequada, desenvolvimento da resistência microbiana e falta de acompanhamento de efeitos adversos.”

Proteção
Garantir que o Ato Médico seja respeitado abrange profissionais e pacientes. O diretor adjunto de Defesa Profissional da Associação Paulista de Medicina, Marun David Cury, demonstra que, ao tomar conhecimento de casos de profissionais de outras áreas exercendo atividades médicas, é possível realizar denúncias na Justiça e aos órgãos competentes de fiscalização, como o Conselho Federal de Medicina.

“A invasão à Medicina por profissionais de outras áreas prejudica, logicamente, o mercado de trabalho dos médicos. Mas o grande problema não é esse, é que a população fica exposta à ação de um profissional que não é habilitado, não tem conhecimento técnico e nem formação suficiente para essa prática. Então, o que se observa são mortes, pacientes com graves complicações e deformidades. Fica difícil reverter esses quadros, por isso que é importante o combate”, declara.

Conforme o especialista descreve, as complicações trazidas por outros profissionais exercendo funções que deveriam ser restritas somente aos médicos são observadas a curto e a longo prazo pela população, já que um profissional sem a formação técnica necessária não pode atuar e fazer procedimentos médicos com segurança.

Marun ainda afirma que a Lei do Ato Médico precisa ser revisada. “Infelizmente, os vetos à época de sua promulgação abriram a porta para a atuação de profissionais de outras áreas em atividades que deveriam ser apenas da Medicina. A legislação deve ser revisada, muito bem analisada e votada para que seja colocado um ponto final nesses procedimentos que estão sendo exercidos por profissionais não habilitados.”

Para Gabriel Senise, há interesses econômicos muito bem-organizados ao colocar profissionais de outras áreas exercendo o trabalho de médicos. “Seja para ganhar dinheiro, economizar recursos ou elevar o patamar profissional, impulsionando essa mudança. Resta saber se tais interesses conseguirão conciliar-se com a proteção de saúde pública e com o arcabouço jurídico.”

Antonio José Gonçalves finaliza que com essa conjuntura em vista, a conscientização da sociedade sobre os riscos do descumprimento do Ato Médico é fundamental, para que assim sejam tomadas as medidas legais cabíveis. “Defender o Ato Médico é defender a Saúde de forma individual e coletiva.”

Matéria publicada na edição 749 (Março/Abril de 2025) da Revista da APM