O que o mundo pode esperar do governo Trump

O século XXI deixou claras algumas tendências peculiares do sistema político norte-americano: a eleição indireta para presidente no colégio eleitoral, em detrimento do voto popular; a profunda polarização social entre um país progressista e uma pauta conservadora; e o aprofundamento das tensões cotidianas, revelado em uma guerra verbal e real entre classes, raças, etnias e gênero.

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Para a professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a vitória de Trump comprova o equívoco da política externa brasileira de abandonar sua cooperação Sul-Sul em busca de uma aliança especial com este parceiro

O século XXI deixou claras algumas tendências peculiares do sistema político norte-americano: a eleição indireta para presidente no colégio eleitoral, em detrimento do voto popular; a profunda polarização social entre um país progressista e uma pauta conservadora; e o aprofundamento das tensões cotidianas, revelado em uma guerra verbal e real entre classes, raças, etnias e gênero.

A eleição de Donald Trump é a síntese de todas estas contradições e fragmentações: perdeu no voto popular por cerca de 600 mil votos para a candidata democrata Hillary Clinton e baseou sua campanha em manifestações racistas, xenófobas, agressivas, misóginas e violentas.

Seja em termos de política interna ou externa, a vitória de Trump revela o temor de mais da metade dos Estados Unidos, com um governante que pode reverter conquistas e direitos sociais a partir de novas ordens executivas e a nomeação de juízes conservadores à suprema corte e validar comportamentos anti-democráticos e autoritários. Além disso, pode-se imprimir uma ação unilateral no mundo, com ênfase no protecionismo e no militarismo. O que esperar?

Em linhas gerais, as primeiras sinalizações de Trump são preocupantes, principalmente no campo doméstico (ainda que revelem coerência com suas promessas). Alguns dos nomes de confiança indicados para o futuro gabinete possuem conhecida aliança e inclinação a grupos racistas e supremacistas.

Temas-chave como deportação de ilegais, redução da imigração, construção do muro na fronteira com o México e o fim do programa de acesso à saúde universal implementado por Obama já receberam sinais de que serão implementados logo no início da gestão. Talvez Trump não consiga cumprir tudo como deseje, como deportar três milhões de pessoas rapidamente, mas sinalizações preocupantes e atos violentos já se espalham pelo país contra as minorias.

Externamente, deverão ser feitos ajustes à agenda prévia, desvalorizando organizações intergovernamentais e revertendo compromissos multilaterais como os relativos ao aquecimento global e a acordos comerciais como a Parceria do Pacífico. Em termos regionais, o foco permanecerá na EuropaÁsia, com possíveis mudanças na relação com a Rússia, apontada como potencial aliada na luta contra o Estado Islâmico. Não se deve esperar grandes alterações diante da China, devido à interdependência econômica. O mesmo se estende à União Europeia e à Organização do Tratado do Atlântico Norte. Serão observadas pressões, mas não se pode abrir mão da presença militar em solo europeu.

Permanece uma interrogação quanto à Cuba. Serão mantidas as relações diplomáticas? Será ampliada esta retomada? Ou será apenas mantida em estagnação? Estagnação parece ser a alternativa.

A situação da América Latina e do Brasil continuará em segundo plano, e tende a ser associada mais a problemas domésticos norte-americanos do que a uma agenda positiva. Os temas prevalecentes serão imigração ilegal, tráfico de drogas e protecionismo comercial, caso se siga a agenda de campanha e se tome como base as declarações de Trump que são o que se possui de concreto sobre seu futuro governo.

Pode-se especular para qualquer lado, mas é improvável que Trump abandone seu unilateralismo e protecionismo. Comprova-se com esta eleição o equívoco da política externa brasileira de abandonar sua cooperação Sul-Sul em busca de uma aliança especial com este parceiro, como tem sido feito no último biênio.

Nenhuma nação pode ter uma definição negativa de sua agenda, adotando medidas de alinhamento em detrimento de sua autonomia. O Brasil somente se reposiciona no cenário quando persegue seus interesses de forma pragmática, inclusive prevendo os riscos de um governo republicano. Trump, assim como todo presidente norte-americano, perseguirá os interesses do seu país, e isso não deve causar surpresa. Cabe ao Brasil fazer o mesmo.

CRISTINA SOREANU PECEQUILO é autora do livro “Os Estados Unidos e o Século XXI”

*Artigo publicado na edição 684 da Revista da APM – dezembro/2016