Ana Carolina Navarrete – A proposta de reforma da Lei 9.656/98 tem lacunas

A pesquisadora em Saúde do Idec enfatiza que o substitutivo de alteração dos planos de saúde não defende os interesses dos usuários e prejudica o diagnóstico e a prescrição do profissional médico

Entrevistas

Ana Carolina Navarrete é advogada e pesquisadora em Saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). De maneira geral, ela relembra que o mercado de saúde suplementar está vivendo um período de redução no número de usuários. Conforme temos um revés econômico, que afeta o emprego, isso prejudica diretamente o setor. A seguir, fala sobre as propostas de mudança da Lei 9.656/1998, em tramitação no Congresso Nacional.

SETOR HETEROGÊNEO
De um lado, temos as operadoras de planos de saúde com uma ligação financeira direta; do outro, o grande mercado de prestadores de serviços; e no meio, o consumidor – parte mais fraca em qualquer uma das situações. A atual proposta de reforma da lei dos planos de saúde tem lacunas, e as principais questões que se colocam são: “Por que fazer essas alterações agora, em um momento de instabilidade econômica e de crise de credibilidade no Congresso? e Para que mexer em um setor heterogêneo, que tem interesses econômicos antagônicos?”.

NÃO ASSISTÊNCIA AO USUÁRIO
Podemos verificar que o substitutivo não vem para atender aos interesses dos consumidores. Quando olhamos para o conteúdo desse material, observamos a proposta de flexibilização das multas para operadoras que descumprirem a lei, instrumentos que barram a busca pela justiça do consumidor quando ele tem cobertura negada. Vemos um reforço da lei para uma possibilidade de ofertas de planos com menor cobertura, mas tudo sem defender os interesses do consumidor.

PLANOS “ACESSÍVEIS”
No final das contas, o usuário pagará por uma oferta tão restrita de cobertura que o acesso ficará circunscrito ao contrato, e não ao serviço. As alterações exigem que o consumidor saiba qual doença terá no futuro, qual tecnologia precisará e se estará ou não na região onde terá o serviço prestado. Esse tipo de exigência de conhecimento é completamente abusiva, cria uma desvantagem exagerada entre a operadora e o consumidor. Além disso, esses planos são de cobertura restrita, pois não há garantia de que o valor será menor. É uma tentativa de desregulamentar o setor sim, de tirar vantagens da Lei 9.656/98.

MÉDICOS PREJUDICADOS
Hoje, o médico sabe que o está previsto no rol. Já para um procedimento não previsto, eventualmente o usuário pede à operadora ou judicialmente. Se houver a permissão de planos acessíveis, o médico precisará saber o que o contrato daquela pessoa cobre, antes de tomar qualquer decisão. Ou seja, está jogada a responsabilidade para cima do profissional, inclusive se naquela região tem tecnologia para aquela prescrição. Outra preocupação que impacta é a obrigatoriedade de o juiz ouvir um perito antes da tomada de decisão de urgência/emergência, colocando em xeque a opinião do primeiro profissional e retardando o acesso do usuário naquele tratamento.

FLEXIBILIZAÇÃO DOS PRAZOS MÍNIMOS
Essa garantia de atendimento para consultas e outros existe para resguardar o consumidor, sem dúvidas, para ele ser atendido em tempo razoável. E também existe como controle da ANS para a qualidade assistencial, para saber se a rede está dando conta de atender as pessoas dentro do previsto. Se flexibilizar esse prazo, não só impactará na qualidade de vida do consumidor – que vai levar mais tempo para ser atendido – como poderá comprometer a própria forma da Agência controlar a qualidade e a suficiência da rede assistencial.

PLANOS COLETIVOS DESREGULADOS
Se houvesse mesmo interesse por parte do relator em redigir um substitutivo que atendesse aos interesses dos consumidores, ele teria enfrentado o problema clássico da falta de regulação dos planos coletivos. O fato de os planos coletivos não terem um teto de reajuste e de as operadoras poderem cancelar o contrato gera um ambiente muito propício para condutas abusivas por parte das empresas. São condições que vulneram o consumidor e não foram enfrentadas pela nova proposta.

RESSARCIMENTO AO SUS
É constitucional e proporciona um equilíbrio entre o mercado e o sistema público de saúde, porque a operadora tem de pagar quem executou o procedimento. Isso evita uma injustiça com o sistema público de saúde e faz com que a operadora cumpra a lei, sendo um incentivo a mais para atender de forma plena o consumidor. Hoje, no ressarcimento, a operadora paga à ANS que, por sua vez, remete a um fundo nacional de saúde, que gere os recursos e repassa para quem é de direito dentro da estrutura do SUS. A proposta agora vem descentralizar o repasse para quem atendeu diretamente a pessoa. Na nossa opinião, isso vai dificultar o cumprimento da lei.

Matéria publicada na Revista da APM 697 – março 2018
Foto: Divulgação