João Garcia – 80% dos que precisam de cuidados paliativos não são atendidos

Vice-presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos afirma que é preciso superar o preconceito com a prática e investir na educação de profissionais da área

Entrevistas

Formado pela Universidade Federal do Maranhão, com especialização em Anestesiologia pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo e doutorado na área de Dor pela mesma instituição, João Batista Santos Garcia é o atual vice-presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP). Ex-presidente da Sociedade Brasileira do Estudo da Dor (Sbed), é o primeiro brasileiro “embaixador da dor” na América Latina. Em entrevista à Revista da APM, falou sobre os princípios da prática de cuidados paliativos, formação de novos profissionais para a área, preconceitos e tabus, avanços e expectativas para o futuro.

Quais os principais objetivos dos cuidados paliativos?
Se baseiam em oferecer melhor qualidade de vida e aliviar o sofrimento de pessoas portadoras de doenças ameaçadoras da vida e, ao contrário do que muitos pensam, não estão somente relacionados a pessoas com doenças terminais, mas também são indicados para vários outros casos.

Para quais doenças a prática costuma ser recomendada?
Os cuidados paliativos são indicados em diversos casos, como doenças neurodegenerativas, entre elas o Alzheimer, em que os pacientes vão ter queda da funcionalidade por muito tempo, consequentemente gerando sofrimento devido à dependência e perda gradativa das funções físicas. Nossa atuação não é somente com o cuidado ao paciente, mas também com a família. É preciso ouvir as demandas, entender as questões sociais e psicológicas por trás do quadro, tudo isso está envolvido dentro da prática.

Existe um momento certo para iniciar o tratamento?
O tratamento deve ser iniciado o mais rápido possível. Em casos de pacientes com câncer, por exemplo, não se deve esperar até que esteja debilitado. O tratamento tardio nos impede de aplicar diversas abordagens que o paciente necessita. Além disso, as necessidades nem sempre são físicas, muitas vezes, e em boa parte do tempo, temos as mais variadas demandas possíveis, principalmente do ponto de vista psicossocial.

Quais especialidades médicas podem trabalhar com cuidados paliativos? Existe alguma formação específica?
Existem várias especialidades autorizadas pela Associação Médica Brasileira (AMB) para trabalhar com a prática, entre elas clínica médica, clínica oncológica, geriatria, pediatria, anestesiologia, neurologia e cardiologia. Hoje, temos cursos de pós-graduação direcionados aos cuidados paliativos e, no Brasil, já existe residência médica na área. Mesmo com os avanços, ainda há certa dificuldade com o ensino, pois não são todas as faculdades que abordam cuidados paliativos na graduação. Essa é uma lacuna que precisa ser trabalhada e, para isso, precisamos de uma política nacional bem estruturada. Apesar do aumento de profissionais que se dedicam aos cuidados paliativos, ainda é um número insuficiente, assim como o de serviços. Infelizmente, não é uma realidade somente do Brasil. Cerca de 80% dos pacientes que precisam de cuidados paliativos no mundo não são atendidos, é um número extremamente alarmante.

Qual o papel da família no tratamento?
A família precisa ser acolhida, pois não é fácil receber a notícia de que seu ente querido é portador de uma doença que pode levá-lo à morte, que vai lhe causar dor, deixá-lo dependente e debilitado. Precisamos explicar detalhadamente todo o planejamento do cuidado, quais são as metas para o tratamento e, principalmente, ouvir as demandas da família, entender e tentar atendê-las. Muitas vezes, precisamos interferir em conflitos com parentes que não aceitam a abordagem e não respeitam a autonomia do paciente. Essa compreensão é necessária para que a família permaneça ao lado do paciente e esteja alinhada com nosso pensamento.

Por que a prática de cuidados paliativos ainda gera preconceitos?
Principalmente porque as pessoas entendem que cuidados paliativos são realizados somente em pacientes terminais, e a indicação não ocorre somente para esses casos. Também podem ser indicados muitos anos antes da morte. Há alguns anos, já foi discutido sobre a mudança do nome da prática, inclusive, muito por conta de todo esse estigma criado.

Há diferenças da área no Brasil em relação a outros países? Em quais locais a prática é melhor desenvolvida?
Além de não termos a solidez educacional, também não existem leis que regulamentam a prática de cuidados paliativos no País, assim como em outros. Temos apenas leis estaduais isoladas e uma resolução de 2018 do Conselho Nacional de Saúde (CONAS), que regulamenta os cuidados paliativos no âmbito do SUS. O Reino Unido é um dos pioneiros da prática, onde Cicely Saunders criou o St. Christopher’s Hospice, primeiro serviço de controle de sintomas, alívio da dor e do sofrimento psicológico. O país tem uma tradição sólida em cuidados paliativos e oferece uma qualidade de morte melhor, devido ao investimento em ensino, pesquisa, serviços e esclarecimento para o público leigo.

Quais as expectativas para avanços da prática?
Desde que a prática chegou ao Brasil até hoje, aumentamos bastante o número de profissionais e times, e o fato de termos equipes multiprofissionais e interdisciplinares cada vez mais bem estruturadas tem ajudado muito. Também aumentamos o número de serviços de cuidados paliativos no País, e temos hoje uma Academia Nacional de Cuidados Paliativos, que completará 20 anos em 2025 – instituição sólida, que representa a categoria do ponto de vista de ensino e política. Para o futuro, sem dúvidas, precisamos investir em educação, com obrigatoriedade do ensino de cuidados paliativos na graduação, aumento de residências médicas, centros educacionais, realizar mais pesquisas sobre a prática e diminuir essa enorme lacuna de pessoas não atendidas.

Publicada na edição 729 – nov/dez de 2021 da Revista da APM
Fotos: Divulgação/Arquivo Pessoal