Procedimento inédito alivia sintomas de quem tem insuficiência cardíaca

No finalzinho de julho, no InCor (Instituto do Coração) da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), um procedimento minimamente invasivo foi realizado pela primeira vez no Brasil.

O que diz a mídia

No finalzinho de julho, no InCor (Instituto do Coração) da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), um procedimento minimamente invasivo foi realizado pela primeira vez no Brasil. Ele promete dar um respiro a um problema tão comum e devastador — a insuficiência cardíaca — que chega a ser surpreendente o nosso desconhecimento ou pouco caso a seu respeito.

A intervenção faz parte de um estudo que poderá fazer diferença para um número de pessoas de que a gente nem faz ideia. Aliás, até o momento, não foram feitas muito mais do que duzentas intervenções idênticas a essa pelo mundo.

Começou por uma punção de nada na região da virilha, ponto de partida da viagem de apenas 40 minutos, entre ida e volta, de um cateter que percorreu com tranquilidade a veia femoral.
“Dali, ele seguiu direto até a veia cava inferior, que dá de cara com o átrio esquerdo do coração”, descreve, com um inconfundível sotaque mineiro, o médico Alexandre Abizaid, diretor do Serviço de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista do InCor.

Vale abrir parênteses para você, como eu, visualizar do que o cardiologista intervencionista está falando. O coração é dividido em quatro câmaras. As duas superiores são os átrios. E logo abaixo estão os dois ventrículos.

Diria que os átrios são como halls de entrada. O do lado esquerdo, por onde o cateter chegou, recebe o sangue oxigenado dos pulmões. E, uma vez o cateter ali, o que aconteceu: “Com uma guia, fizemos um buraquinho no septo”, conta o doutor Abizaid, se referindo à parede que separa essa câmara ao átrio vizinho, o direito, hall que, no caso, recepciona o sangue que já circulou pelo corpo, paupérrimo em oxigênio.

Na sequência, os cardiologistas intervencionistas — mestres em trocar bisturis e grandes cortes por discretas viagens pelos vasos — inflaram um balão bem no orifício recém-criado até ele ficar com uns 8 ou 10 milímetros. Finalmente, para que não se fechasse, deixaram ali um dispositivo feito de um metal superelástico e maleável, o nitinol. É o que os médicos chamam de AFR, sigla em inglês para, traduzindo, regulador de fluxo atrial.

“Com isso, criamos uma comunicação entre os átrios”, diz o doutor Abizaid. Só entendendo as pressões internas que a insuficiência cardíaca provoca — e que culminam encharcando os pulmões de líquido — para compreender por que a artimanha é capaz de oferecer qualidade de vida aos pacientes.

O tamanho do problema

Garanto: a insuficiência cardíaca está entre nós. Você certamente conhece alguém que carrega esse problema no peito, às vezes ignorando o perigo na fase inicial, até por falta do acompanhamento periódico que toda e qualquer doença cardiovascular pediria.

Afinal, em última instância, tudo o quanto é piripaque que o coração pode sofrer é capaz de causar uma insuficiência cardíaca — infarto, miocardite, doença congênita, problemas nas válvulas, os castigos impostos pela pressão alta… A coisa vai longe. Inclua no rol o diabetes, condição que igualmente maltrata o peito.

“Quando você tem uma doença cardiovascular e não morre subitamente, então talvez acabará morrendo de insuficiência cardíaca”, dá a dura lição o professor Edimar Bocchi, também do InCor, considerado um dos maiores nomes do país quando se trata dessa condição.

Segundo ele, cerca de 2% da população mundial têm a insuficiência. “E, no Brasil,”, arrisca, “a proporção deve ser um pouco maior do que a média global, porque aqui temos a doença de Chagas, que é outra de suas causas, e um acesso difícil ao acompanhamento médico adequado.”

Se não há tratamento, a mortalidade por insuficiência cardíaca é nas alturas: 50% em cinco anos. “Portanto, ela mata mais rápido do que a maior parte dos cânceres”, calcula o cardiologista.

A questão não é só colocar um ponto final na vida — como se isso fosse pouco. Até morrer, o sujeito é internado várias vezes, mal conseguindo respirar. “O custo social é enorme”, observa o professor Bocchi. “E olhando para o indivíduo, nesse meio-tempo há um comprometimento do dia a dia.”

Além de apresentar sintomas como inchaços nas pernas, a pessoa vai perdendo o fôlego. Chega o momento em que a falta de ar se torna constante. Pior, sofrida. Realmente incapacitante.

O que acontece
Existem dois tipos da doença. Uma delas geralmente acomete pessoas mais velhas, em torno dos 70 anos. É a chamada insuficiência cardíaca de fração de ejeção preservada.

O que significa: “O coração, ao se contrair, continua bombeando como esperado, mas ele não relaxa muito bem. Logo, não se enche de sangue como deveria”, explica o professor Bocchi.

Essa forma sobrecarrega em especial o lado direito do coração — aquele que recebe o sangue que já circulou pelo corpo e que, em seguida, trata de lançá-lo aos pulmões para ser reabastecido de oxigênio.

“O procedimento com o AFR já foi usado em estudos pequenos nos Estados Unidos e na Europa para tratar esse tipo de insuficiência”, esclarece Alexandre Abizaid. “A novidade é que estamos estudando o dispositivo no outro tipo, o que chamamos de fração de ejeção reduzida.” Nessa forma, é o bombeamento do sangue, a cargo do lado esquerdo do coração, que fica deixando a desejar.

Normalmente, o coração ejeta mais de 60% do sangue que está em seu interior. Essa outra forma de insuficiência dá as caras quando ele passa a ejetar 40%, 35% ou menos. E isso vem acontecendo com frequência a partir dos 55 anos.

“Por causa de lesões no músculo cardíaco, o ventrículo esquerdo, que é a câmara inferior desse lado, vai entrando em falência”, explica Alexandre Abizaid. “Como perde força para bombear, parte do sangue, em vez de seguir rumo ao resto do corpo, retorna. Vai para trás, para o átrio, onde também está chegando mais sangue, aquele que acabou de ser oxigenado.” Resultado: muito volume e uma pressão interna danada. Para não dizer, sufoco.

Por que falta o ar

“Por uma questão de Física, essa pressão que o sangue oferece às paredes internas do coração é transmitida retrogradamente”, completa o professor Bocchi. Nessa marcha-ré, alcança os pulmões. E, ali, a distensão dos vasos pressionados por esse fluxo permite que o líquido da circulação extravase. Com tudo encharcado, as famosas trocas gasosas encontram dificuldade. A pessoa sente como se estivesse se afogando no seco.

Essa circulação toda atrapalhada também promove inchaços nas pernas. Até porque os rins não ajudam em nada nessas horas: em uma reação primitiva, entendem que, diante do coração enfraquecido, precisam segurar líquido.

A busca por tratamentos

“O que temos hoje para tratar a insuficiência já diminuiu a mortalidade, que chegou a ser ainda mais alta, mas ainda não resolve o problema”, afirma Edimar Bocchi.

O arsenal inclui principalmente diuréticos para eliminar o líquido retido pelos rins, remédios que agem em sistemas neuro-hormonais envolvidos com a circulação e beta-bloqueadores que seguram um pouco as taquicardias capazes de acompanhar os quadros.

Um coração semi-novo transplantado seria, em tese, a solução. Na prática, porém, a história é outra. “No ano passado, foram realizados 5,5 mil transplantes cardíacos em todo o mundo. Isso, perto dos 2% da população com insuficiência do coração, é um nada”, afirma Bocchi.

“Além de muitos pacientes com insuficiência aguardarem na fila e não verem chegar a sua vez, temos de lembrar que algumas pessoas não são candidatas ao transplante, seja por idade ou por terem comorbidades Daí a procura por novas saídas”, observa o doutor Alexandre Abizaid.

De acordo com ele, o implante do AFR não é curativo. “Se olhar na literatura médica, verá que não afeta a mortalidade. No entanto, temos esperança de que aumente a qualidade de vida dessas pessoas”, diz.

Isso porque aquela comunicação entre os átrios leva parte do sangue em excesso no lado esquerdo a escoar para o lado direito, aliviando a pressão. E, consequentemente, poupando não só o músculo cardíaco, mas os pulmões afetados por tabela.

Pergunto se não haveria problema. Ora, crianças que nascem com fístulas — termo médico para essa comunicação — precisam ser operadas. “Mas aí o perigo é o sangue sem oxigênio ser distribuído pelo organismo”, diferencia o doutor Abizaid.

No caso do AFR, me explica, o sentido é inverso. E até passa um pouco do sangue já oxigenado para ser enviado de volta aos pulmões. Só que esse bis não tem consequência.

O que esperar

Serão 60 pacientes no estudo, todos com o lado direito do coração funcionando bem e sendo devidamente medicados para insuficiência cardíaca. Mas apenas metade, sorteada, receberá o dispositivo

A outra metade, porém, não saberá que ficou sem o AFR, porque fará um cateterismo. Assim, não será influenciada ao responder questionários sobre como se sente. A análise, claro, também envolverá diversos exames para averiguar se, de fato, essa contribuição da cardiologia intervencionista traz vantagens extras para quem já estava se medicando.

“O melhor mesmo seria evitar as doenças cardiovasculares que, no final das contas, enfraquecem o coração”, suspira o professor Bocchi. E aí voltamos ao comer direito, se exercitar, apagar o cigarro, evitar o estresse… À parte complicada, por ser a que nos cabe.

Fonte: UOL Viva Bem