Cine Debate de agosto tem discussão sobre entendimento e perdão

Na ocasião, foi promovida uma roda de conversa acerca do longa “Hannah Arendt – Ideias que chocaram o mundo”, filme de 2012 da diretora alemã Margarethe von Trotta

Últimas notícias

Na última sexta-feira, 12 de agosto, a Associação Paulista de Medicina realizou mais uma edição on-line de seu tradicional Cine Debate. Na ocasião, foi promovida uma roda de conversa acerca do longa “Hannah Arendt – Ideias que chocaram o mundo”, filme de 2012 da diretora alemã Margarethe von Trotta. A ação cultural da APM, que teve como tema “Entender é diferente de perdoar”, é coordenada por Wimer Bottura Júnior e teve a participação das psicólogas Miriam Tawil e Maria Suzana Stefano Menin como debatedoras convidadas.

A obra cinematográfica descreve o julgamento do nazista Adolf Eichmann, preso na Argentina e julgado em Jerusalém, de modo que Hannah é chamada para cobrir o acontecimento através de uma série de reportagens. Sua visão acerca do Holocausto traz uma abordagem que até então não havia sido realizada, ocasionando um grande escândalo – pois a imigrante judia-alemã sofre uma forte retaliação por parte de amigos e inimigos. Entretanto, ela se mantém firme diante da situação, em uma tentativa de romper ligações com o passado angustiante, revelando os seus lados mais vulneráveis.

O Cine Debate é um programa que começou em 1997, contando atualmente com mais de 200 edições e mais de 100 debatedores convidados. Para o coordenador, as sessões representam o trabalho da APM em prol da promoção de cultura. “O filme de hoje é extremamente interessante e as nossas debatedoras são altamente qualificadas. A Associação Paulista de Medicina tem muito orgulho do programa”, destacou.

À frente de seu tempo

Durante a análise de Hannah a respeito do julgamento de Eichmann, ela foi responsável por desenvolver a teoria do que se define por “banalidade do mal”. De acordo com a psicóloga Miriam Tawil, é necessário entender a biografia desta notável personalidade, para assim compreender o que a fez ser escalada para cobrir esse grande julgamento.

Hannah Arendt foi uma filósofa nascida na Alemanha, em 1906, que morreu aos 69 anos, nos Estados Unidos. Durante parte de sua vida, migrou de seu país natal para a França, local em que o antissemitismo era notável, de modo que, lá, foi internada no Campo de Gurs, em que mulheres viviam em condições subhumanas, com pouca higiene, colchões mofados por água da chuva e proliferação de doenças, entre outras.

“Havia uma distinção entre campo de concentração e campo de internação, já que no primeiro era colocado quem, efetivamente, estava destinado a ser eliminado. Quando ela foi ao julgamento, viu em Eichmann uma pessoa fria e tola, que não estava representando aquilo que pensava. Para Hannah Arendt, aquele julgamento parecia um grande espetáculo e tudo estava ensaiado porque era isso que o presidente queria. Naquela época, era um grande jogo político”, explicou a debatedora.

Miriam também enfatizou que, para a protagonista do filme, toda a situação representava um grande teatro, pois, além de não haver sentimentos, também não existia mais nenhum resquício de humanidade no réu e nos executores. Sendo assim, a partir do momento em que ela é acusada de ter perdoado um agente nazista, não ter o incriminado e ter dito que ele não era um criminoso comum – mas sim apenas um medíocre cumprindo ordens -, sua teoria passa a ser muito mal-recebida, ao ponto de até aqueles que ela considerava amigos lhes virarem as costas.

“Ela fala várias vezes que entender não é o mesmo que perdoar, porque ela sempre teve essa questão de entender. Era uma filósofa e queria entender as origens do totalitarismo, do porquê as pessoas se submetiam àqueles que faziam exigências malignas. Dizia, e constantemente reforçava, que não estava lá para julgar, mas apenas para entender”, pontuou.

Além disso, a palestrante expressou que ao assistir algumas entrevistas com Hannah Arendt, é possível notar significativas diferenças em sua personalidade original e na que é retratada no filme. Na vida real, a filósofa era doce e meiga, de modo que a sua feição dura e fria, que é exposta no filme, acontece quando não entendem o conceito que ela estava apresentando, distorcendo sua teoria.

O filme detalha também que a personagem era uma grande defensora da teoria de que as pessoas sempre têm uma escolha e que, por alguma razão, agem como se não tivessem. Sendo assim, a diretora da obra, Margarethe von Trotta, procurou retratá-la como uma mulher forte, importante para o feminismo, já que sempre esteve à frente de seu tempo, sendo livre no sentido do amor, sexual, teórico e filosófico.

“Ela era uma pessoa muito à frente da época em que vivia. Quis aprender inglês e foi morar em uma casa no interior de Nova York para ser governanta e realizar serviços domésticos, enquanto aprendia o idioma em troca, o que foi uma ótima experiência. O pai de Hannah faleceu quando ela tinha sete anos, e ela e a mãe ficaram sozinhas no mundo, fazendo com que desde pequena tivesse que ser autossuficiente”, complementou a primeira convidada.

Danos de uma obediência refletida

Dando continuidade às apresentações, Maria Suzana Stefano Menin descreveu os riscos de uma obediência cega, principalmente em casos de regimes autoritários como o nazismo, responsável pelo genocídio em massa de uma população. A psicóloga destacou que em uma das primeiras cenas do filme, Eichmann diz que obedeceu a Hitler por ter feito um juramento a ele, mas que a partir do momento em que o ditador morreu, o juramento estava finalizado, dando a entender que a sua obediência era irrefletida, cega e não pensante.

“Isso se constitui em uma ideia de colocar como mito e líder alguém que não pode ser contestado e que deve ser obedecido irrestritamente. Em uma parte do filme, há uma fala da Hannah que diz ‘junte a crueldade com a mediocridade e dá isso que você vê no Eichmann’. Essa ideia de banalidade do mal me faz ligar com outros estudos que a gente viu em Psicologia da moralidade, relacionada a valores que entram muito em uma questão de desenvolvimento social também”, expôs.

A debatedora indicou que já foram realizados estudos muito interessantes que buscam entender como se constitui o caráter autoritário, que é dividido entre uma série de escalas, apontando que há diversas estruturas na personalidade dos indivíduos que faz com que determinadas pessoas tenham maior propensão ao fascismo, estando diretamente relacionadas a um conjunto de características, meio ambiente propício e universo cultural provocador que as coloquem frente à defesa de um regime totalitário.  

De acordo com a especialista, algumas características que corroboram para a ascensão de tais regimes, como o fascismo e o nazismo, estão aparecendo constantemente na sociedade atual, sendo fundamental detalhar e entender algumas delas. A figura autoritária tem em sua personalidade o convencionalismo, supervalorização de “bons costumes”, tradicionalismo e imutabilidade social. Outras características atribuídas a ela são a submissão à autoridade, obediência cega aos considerados fortes e poderosos, agressividade autoritária, tendência a julgamentos severos, culpabilização e castigos rigorosos. Além disso, também negam seus sentimentos e são introspectivos, com tendência à destrutividade e cinismo.

“Um estudo muito interessante que fornece a percepção de como o autoritarismo funciona foi realizado em 1961, nos Estados Unidos, simulando um teste de memória entre professores, alunos e voluntários. Foi armada uma situação em que os participantes não poderiam errar um teste de memória, mas esse teste, obviamente, estava programado para causar erros. Sendo assim, o professor falava para o aluno que conforme a pessoa errasse, seria submetida a choques cada vez mais intensos e os alunos obedeciam, aumentando o choque”, relembrou.

A psicóloga explicou que, durante a pesquisa, cerca de 65% dos estudantes chegaram a dar choques que seriam considerados fatais caso a experiência tivesse sido realizada utilizando instrumentos verdadeiros – provando que em uma situação em que há uma figura de autoridade, neste caso o professor, as pessoas irão reproduzir as ordens que lhes foram dadas.

De acordo com a palestrante, tais situações foram criticadas, discutidas e refeitas, assim como as escalas de personalidade, mas ainda são fortemente confirmadas e relevantes. “O que chocou o mundo nas ideias de Hannah Arendt foi ela ter mostrado que Eichmann não era um monstro e nem uma pessoa anormal, mas alguém com uma obediência medíocre e que através disso foi capaz de fazer coisas terríveis, sendo um alerta para os riscos que uma obediência cega pode trazer. Claro que houve uma série de críticas a respeito dessa posição dela, porque ele podia ser medíocre, mas era cruel também. Ele era obediente a uma autoridade e nós sabemos o que isso ocasionou na história”, acrescentou.

Valor da verdade

O coordenador do Cine Debate, Wimer Bottura Júnior, ficou responsável por realizar os comentários finais. Na opinião do cinéfilo, uma das problemáticas abordadas pelo filme se dá ao mostrar que em todos os exércitos existentes ao redor do Planeta existe uma lei em que os soldados são obrigados a cumprir as ordens que lhes são impostas. Caso contrário, são penalizados, correndo risco de tais castigos serem impostos até mesmo às suas famílias.

Isso contribui para a percepção do que é uma obediência obrigatória e foi assim que a figura histórica analisada, Hannah Arendt, se manteve firme em sua missão para descobrir a verdade. “O tamanho do sentimento de ódio e vingança que as pessoas tinham internalizado por conta da situação que viveram durante o Holocausto e o nazismo era muito grande, e Adolf Eichmann era o gargalo desse sentimento, pois por onde ele passava, despertava as sensações de quem queria ter destruído Hitler. Portanto, ele era um representante de todo aquele sofrimento canalizado pelos judeus”, relembrou.

Neste sentido, Bottura relembrou que durante grandes guerras, algumas populações eram obrigadas a cooperar com o inimigo por uma questão de sobrevivência. No caso de Hannah Arendt, ela se destacava por contrariar interesses imediatos, procurando a verdade e conseguindo separar ódio, vingança, medo e tristeza. A importância da filósofa se dá por sua compreensão acerca das limitações das pessoas, e ela demonstra isso em suas obras, relatando o que é a banalização do mal e chocando o mundo ao revelar verdades que a população não podia e não queria ouvir.

Para o psiquiatra, também é válido notar que o filme destaca o valor da amizade, revelando que todos serão seus amigos enquanto forem cumpridas as expectativas deles. No entanto, no momento em que tais expectativas são quebradas, passam a virar as costas, se tornando inimigos e alimentando o ódio, o que aconteceu com Hannah Arendt. Todavia, em nenhum momento ela traiu o seu povo, os judeus, sendo apenas uma mulher com uma visão de sociedade chocante para o padrão daquela época.

“Aqueles que a odiaram não leram a sua obra até o fim e não compreenderam os conceitos que por ela estavam sendo apresentados. Ou até leram, mas a raiva cega as pessoas de compreender e se aprofundar. É importante a gente olhar para todos os aspectos que o filme traz, indicando que a banalidade do mal vem sempre mascarada de falsa bondade. ‘Hannah Arendt – Ideias que chocaram o mundo’ é um filme que mostra uma hipocrisia que ainda está presente na sociedade, pois ainda estamos muito longe de sermos seres verdadeiramente humanizados”, encerrou.

Perdeu ou quer rever alguma edição? Acesse este link.

Imagens: Reprodução Cine Debate APM