As zonas cinzentas sob ataque

DE ACORDO COM O PROFESSOR DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA PUC-SP E FAAP, A EXPRESSÃO “ZONA CINZENTA” TEM SIDO UTILIZADA PELO GRUPO TERRORISTA ESTADO ISLÂMICO (ISIS) PARA SE REFERIR ÀQUELES PAÍSES OCIDENTAIS – “CRUZADISTAS” E “CRISTÃOS” – COM IMPORTANTES COMUNIDADES DE IMIGRANTES MUÇULMANOS

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A pinhado junto a uma multidão de manifestantes, vestindo as tradicionais djellabas e ostentando barbas suntuosas, dois senhores muçulmanos posam para uma foto no centro de Paris. Com as cabeças cobertas em sinal de piedade, ambos carregam um cartaz onde se lê “Je suis Charlie”. Essa imagem, carregada de simbolismo, foi publicada na capa da sofisticada revista de propaganda do grupo Estado Islâmico (ISIS), Dabiq, dias após o massacre na sededo jornal satírico Charlie Hebdo. Abaixo da foto, a revista exorta os muçulmanos na Europa a acabarem com as “zonas cinzentas”.

A expressão “zona cinzenta” tem sido utilizada pelo grupo terrorista  para se referir àqueles países ocidentais – “cruzadistas” e “cristãos – com importantes comunidades de imigrantes muçulmanos. Mais especificamente, trata-se da esfera de coexistência na qual muçulmanos e não-muçulmanos podem viver juntos. O conceito está amparado em uma visão de mundo binária, na qual apenas duas categorias são possíveis: o fiel e o infiel. Como no código que processa um computador, o Estado Islâmico são os “uns” e o resto do mundo são reduzidos aos “zeros”.

Cidades como Paris e Beirute produzem profunda aversão aos ideólogos do Estado Islâmico, pois elas sugerem que muçulmanos e não muçulmanos podem conviver pacificamente, visitar os mesmos supermercados, assistir partidas de futebol juntos e ouvir as mesmas músicas. Manifestações do tipo “Refugees welcome” também incomodam a militância do ISIS, uma vez que elas contradizem seu discurso de que o Ocidente é naturalmente hostil ao Islã.

Por essa razão, aterrorizar cidades europeias que tenham forte presença de imigrantes muçulmanos – como Paris, Berlim, Londres ou Bruxelas – tornou-se parte do repertório tático do Estado Islâmico. A intenção do grupo é provocar os países europeus a reprimirem os muçulmanos dentro das suas fronteiras. É fazer aflorar nas lideranças  ocidentais a mesma visão binária que caracteriza o universo ideológico do Estado Islâmico. Não interessa ao ISIS se as vítimas são muçulmanas, afinal, os números provam que a barbárie disseminada pela organização em diversos países do Oriente Médio tem vitimado principalmente muçulmanos, a quem consideram apóstatas.

Como sugerem os propagandistas do ISIS, uma Europa islamofóbica criaria as condições para os muçulmanos perseguidos pelos “governos cruzadistas” migrarem para o califado islâmico proclamado em 2014. É um método de recrutamento. Querem convencer os muçulmanos descontentes de que eles devem abandonar sua vida nas “zonas cinzentas” de uma Europa secular e hostil ao Islã, em busca da redenção no califado, que representaria a atualização dos ideais islâmicos sob a forma de um estado utópico. Em suma, atacar a Europa aumentaria a repressão aos muçulmanos que, por sua vez, buscariam abrigo no Estado Islâmico.

Em ascensão na Europa, a extrema direita presta um inestimável favor ao jihadismo ao adotar a fórmula binária do “nós” contra “eles”. Embora derrotados na França, Holanda e Áustria, os partidos de extrema direita, com suas plataformas anti-imigração, mostraram sua força nas eleições deste ano. O que quer o ISIS é uma Europa que se posicione como George W. Bush logo após o 11 de setembro: “ou vocês estão conosco, ou estão com os terroristas”. O ódio destilado contra o multiculturalismo, a crítica à sociedade aberta e cosmopolita transformam Marine Le Pen [candidata de extrema-direita derrotada nas eleições francesas deste ano] e tutti quanti em aliados do Estado Islâmico. Ambos querem aniquilar as zonas cinzentas.

Além disso, ambientes caracterizados pelo desemprego, exclusão social, privação e um senso de discriminação transbordam um profundo ressentimento que são explorados pela máquina de propaganda das organizações terroristas. Como ensina qualquer manual de contra insurgência, pouca serventia terão as recentes vitórias contra o Estado Islâmico em Mossul (Iraque) e Raqqa (Síria) se a Europa não se preocupar em conquistar “corações e mentes” dos imigrantes muçulmanos. Ao invés de destruir, a saída é reconstruir e valorizar as zonas cinzentas, promovendo um mosaico multifacetado de identidades. A saída, pois, é mais Merkel [Angela Merkel, chanceler alemã] e menos Le Pen.

DAVID ALMSTADTER MATTAR DE MAGALHÃES é doutor em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP-PUC-UNICAMP)

Artigo publicado na Revista da APM – edição 690 – julho 2017