Educação perante a Telemedicina

A oferta de serviços médicos e cuidados com a saúde à distância, utilizando as tecnologias da era digital, está crescendo no Brasil. Sim, aumentando, apesar do cipoal de dificuldades normativas e legais que precisariam ser revistas e atualizadas urgentemente. Telemedicina verdadeira é pouca, o que existe em profusão são práticas oferecendo resultados de exames laboratoriais e diagnósticos da análise de imagens de órgãos, de lesões e de traçados eletrofisiológicos.

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A oferta de serviços médicos e cuidados com a saúde à distância, utilizando as tecnologias da era digital, está crescendo no Brasil. Sim, aumentando, apesar do cipoal de dificuldades normativas e legais que precisariam ser revistas e atualizadas urgentemente. Telemedicina verdadeira é pouca, o que existe em profusão são práticas oferecendo resultados de exames laboratoriais e diagnósticos da análise de imagens de órgãos, de lesões e de traçados eletrofisiológicos.

A Telemedicina deveria ser ensinada em todos os cursos médicos, porém não é. Pelo contrário, praticamente, não consta do currículo de nenhum curso. Temos uma colossal tarefa educacional pela frente. Diria missão impossível, já que a maioria dos 312 cursos de Medicina que dizem existir, oferecendo 31.395 vagas, não é e nem será capaz de formar médicos com as competências do século passado; muito menos com aquelas exigidas hoje e nos próximos anos.

Precisaríamos educar os alunos para que se familiarizassem com a tecnologia da Telemedicina, compreendessem sua lógica, vantagens e limitações, assimilassem sua ética, tomassem ciência de seus aspectos normativos e legais, e que entendessem suas nuanças na relação médico-paciente.

Neste artigo, apenas abordarei este último aspecto que diz a respeito da atitude dos médicos e, igualmente importante, dos pacientes. Examinaremos aquilo em que a era digital, até agora, não fez progresso algum: a consciência. É ela que humaniza a Medicina. Um robô poderá ter inteligência superior à nossa, porém sua consciência é zero. É incapaz de sentir; só faz aquilo que nós, humanos, programamos: sua inteligência, porém não sua consciência. Nem podemos, pois somos incapazes; nesta área nosso conhecimento é quase nulo.

O futuro
Em 2016, escrevi uma carta aos calouros da minha faculdade, onde disse não enxergar o futuro que lhes esperava no fim do curso. Passados dois anos, o cenário continua nebuloso, sei apenas que a Medicina atualmente praticada estará quase irreconhecível, justamente por obra deste aparelhinho que habita a maioria dos bolsos da humanidade: o smartphone. A Medicina é refratária a mudanças e pouco foi atualizada para a era digital, porém o inevitável virá nos próximos anos e as alterações serão tão drásticas como no mundo financeiro e comercial.

Vejam, aplicativos celulares para a saúde existem muitos, até a Prefeitura de São Paulo lançou a Agenda Fácil para aprimorar o atendimento médico no município. Mas é usado? E a pergunta pode ser ampliada: as vantagens da tecnologia atual são bem aproveitadas pela Medicina brasileira? A resposta é um triste e maiúsculo NÃO.

E aqui aparece nossa primeira dificuldade. Ao desconhecer a Medicina a ser praticada, não podemos construir objetivos educacionais e programas curriculares adequados. A pergunta é: como educar para o desconhecido?

Poderá parecer que estou me afastando do escopo do assunto Telemedicina, porém, penso não ser o caso. Em novembro do ano passado, no 8º Congresso Brasileiro de Telemedicina e Telessaúde, fiz uma palestra sobre O Futuro da Telemedicina. Na oportunidade, declarei que o termo “telemedicina” não terá mais significado; não por desuso, mas por excesso. Assim, em poucos anos a Telemedicina e a Medicina imbricarão de tal forma que não haverá porque separá-los e, salvo um grosseiro engano, nem há razões de delimitar a Telemedicina da Medicina nesta minha apresentação sobre educação da relação médico-paciente.

Estou convencido de que o que menos mudou e mudará com o tempo é a essência desta relação. Também tenho a esperança que mesmo nas escolas mais deficientes, atitudes em relação aos pacientes são comentadas e ensinadas aos estudantes. Afinal das contas é um aprendizado que não requer recursos, além de doentes e de um médico bom com vivência profissional. Isto deve existir em todo lugar. Os alunos se interessam por este assunto e acredito que aprendem muita coisa. Onde a vaca vai ao brejo é na prática. O atendimento ambulatorial do SUS não permite uma relação sadia.

Na minha palestra no 8º Congresso mostrei um estudo feito no campus de Ribeirão Preto correlacionando a satisfação dos pacientes com o tempo de atendimento. Os resultados mostraram que pacientes atendidos entre 15 e 11 minutos (aqui retirei os segundos para nossa comodidade) consideravam o atendimento excelente, consultas de 11 a 7 minutos foram consideradas boas, de 7 a 4, regulares e apenas quando foram inferiores a 4 minutos, os pacientes se queixavam de serem mal atendidos. Um espanto! Os resultados indicam decadência do sistema todo. A aceitação dos pacientes é triste e dos médicos, mais ainda.

Nos convênios a situação não é muito melhor. Dados norte-americanos informam que o paciente quando inicia o relato de seu problema é interrompido pelo médico, em média, após 18 segundos. Pode-se dizer que é só na clínica particular que temos tempo para um bom relacionamento médico-paciente.

Robótica
O atendimento precário é um poderoso incentivo para substituir médicos por robôs. O Professor Luiz Carlos Lobo escreveu um excelente artigo sobre Inteligência Artificial, Prática e Educação Médica e nele assegura que mais de 50% da população mundial aceitaria ser atendida por robôs. Baseia-se na entrevista de milhares de pessoas dispersas por quatro continentes. É muito significativo que os números sugerem que a percentagem de aderência é inversa à qualidade da prática médica. Assim, só para dar um exemplo, na Nigéria 94% da população vê a robótica com simpatia e na Inglaterra, apenas 39%. Brasil não participou desta pesquisa, porém não tenho dúvidas que os robôs terão grande clientela por aqui.

A robótica ocorrerá na forma pura, sem interferência do médico, porém o mais provável é que o toque humano será desejado ou necessário, no mínimo, muito importante. A maioria dos futurologistas acredita nisto e aconselha que andemos de mãos dadas com os robôs. É lógico que este relacionamento terá que ser ensinado, portanto é uma educação necessária, imagino a cargo da Telemedicina.

A relação médico-paciente sempre foi o alicerce da Medicina, nela que repousa a confiança no médico e a esperança na cura. Na Telemedicina não é diferente, mesmo se for por robô. Esta relação, pela sua própria natureza, tem um diálogo assimétrico que não mudou através dos séculos e o aprendiz é treinado para conduzi-lo desde os tempos de Hipócrates. Então, o que há de novo, o que se pode acrescentar? Pelo menos três coisas:

Primeiro, convém lembrar que na prática da Telemedicina existem situações frequentes em que só se ouve a voz do paciente e precisamos educar o estudante para conduzir a consulta às cegas. Assim como a linguagem do corpo é importante, as inflexões da voz também são reveladoras. Há técnicas para desenvolver esta percepção e que devem ser ensinadas.

Segundo, quando se trata de atendimentos remotos, muitas vezes aparecem barreiras culturais e de linguagem a serem superadas. A flexibilidade do cérebro humano tem vantagens óbvias sobre os robôs que, embora capazes de atender inúmeras línguas, geralmente, só são programados para a língua padrão. Onde há diversidade, é importante educar os estudantes para lidar com a mesma. Não precisamos pensar na Amazônia, mesmo as populações do bairro Higienópolis, no centro de nossa cidade, e da Vila Galvão, na periferia, apresentam diferenças de entendimento e merecem atenção.

Mais uma razão para a obrigatoriedade de os alunos participarem de serviços comunitários de saúde durante o curso médico. A oportunidade deve ser usada para o aprendizado de diversidades culturais e linguísticas que têm importância no atendimento de pacientes.

A minha terceira consideração é educar o médico como se comportar perante o acelerado empoderamento apresentado pelos pacientes. Este neologismo expressa, neste contexto, a realidade de que, com a facilidade de acesso à informação, participação de redes sociais e uso dos aplicativos celulares, as pessoas chegam aos médicos muito mais informadas.

Aqui é que cabe uma educação mais cuidadosa e elaborada. Algo que deveria ser ensinado, mesmo se a sua aplicação na rotina seja duvidosa. Disse duvidosa, porque consome tempo.

O médico deve aceitar o diálogo com seu paciente. Com isto, sempre poderá aprender algo e ajudar muito. Em vez de se irritar com a situação, deve ser habilidoso e guiar a pessoa para consultar sites bons e participar de redes de comunidades que possam ajudar o paciente. Isto é muito importante porque, atualmente, se estima que 80% do que existe de informação sobre saúde e doença para leigos na internet está errado.

Uma boa prática é verificar se o paciente usa aplicativos no seu celular e certificar se o faz corretamente, mesmo quando o médico achar que não deve usá-los. Obviamente, há o pressuposto que o médico esteja atualizado nas e-tecnologias. A situação atual é problemática; tem-se a impressão que em toda parte os leigos usam mais os aplicativos do que os profissionais. Repito o que falei no início: é urgente que se ensinem nas faculdades de Medicina o uso dos aplicativos disponíveis.

Resumindo, o esforço do médico deve ser no sentido de engajar o paciente na preservação de sua saúde e na cura de sua doença. E isto só pode ser obtido encorajando-o a entender os males que o afligem.

Educação
Esta educação do médico converge para a educação do paciente. Na era digital as populações estão se empoderando independentemente das ações externas de quem quer que seja. A meu ver, isto é muito bom, e durante o relacionamento médico-paciente há uma oportunidade de ouro para fortalecer este enriquecimento ao orientar e encorajar a consulta de bons sites pelo doente.

Que seja claro que não me refiro à literatura e à informação profissional; trata-se da indicação dos sites apropriados para o esclarecimento da população, a Wikipédia por exemplo. E isto é bem penoso, pois requer tempo, bastante tempo, justamente o que falta na vida dos médicos.
De certo modo, trata-se de um retorno ao passado, quando a Medicina ainda não era um big business e os pôsteres Procure seu Médico ainda não ocupavam todas as propagandas de remédios. Até aproximadamente a 2ª Guerra Mundial, uma pessoa de mais idade e experiência, geralmente uma avó, cuidava dos adoentados e o médico só era chamado quando seus conhecimentos se mostravam insuficientes.

Este problema ocupa minha atenção há décadas. Em 1991, fiz uma conferência na Fundação Joaquim Nabuco, Recife, sobre Medicina e Modernidade. Abordei os temas: modernidade dos fármacos, do diagnóstico e da terapêutica. Terminei dizendo: “A ideia final com que desejo estimular o debate é a necessidade de criar um espaço formal e adequado no currículo primário e secundário para a Educação Médica. A modernidade maior não será caracterizada por transplantes espetaculares, nem por máquinas de diagnóstico certeiro e tampouco por drogas que manipulam o código genético. A meu ver, a participação plena de cada indivíduo na preservação de sua saúde e no combate às suas doenças seria, mais que modernidade, uma verdadeira revolução na Medicina”.

Acredito, hoje, que a educação perante a Telemedicina alavancará esta previsão.

György Miklós Böhm, professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo