Dario Birolini – Mais de 50 anos dedicados à Medicina

Natural de Fiume, Itália, chegou ao Brasil em 16 de outubro de 1951, aos 13 anos, quando ainda nem imaginava ser médico. Foi o primeiro da família a seguir a profissão, tendo se formado na 44ª turma da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP ) e inspirado um irmão, um sobrinho e um filho a também serem médicos. Especialista em Cirurgia, fez carreira na Emergência do Hospital das Clínicas,onde trabalhou por 50 anos. Em 1987, tornou-se o primeiro professor titular de Cirurgia do Trauma do Brasil, na FMUSP , instituição na qual também é professor emérito. À Revista da APM , ele fala sobre a Medicina nos dias de hoje e as perspectivas futuras.

Entrevistas

Como avalia a saúde pública brasileira?

Quando comparada com a de outros lugares do Planeta Terra, nós temos uma saúde precária. Existe uma série de problemas muito sérios, que serão agravados daqui para frente. Temos uma longa caminhada ainda. O sistema de saúde pública tem que ser de boa qualidade, atender todo mundo de maneira honesta, respeitosa e justa, sem haver divergências pelo fato do cara ser branco, preto, alto, baixo, rico ou pobre. Saúde é saúde. Não adianta oferecer um produto de má qualidade.

O que pensa do programa Mais Médicos?

Eu não tenho nada contra importar médicos, mas só acho e sempre digo que precisam vir da república da competência ou do território da responsabilidade. Não adianta só trazer médicos, que não é a mesma coisa que importar automóveis. É necessário profissionais que tenham uma série de características fundamentais para exercer uma Medicina decente e adequada para o atendimento da população. Então, não é um número. O que interessa é a qualidade. Mas, infelizmente, o que se faz é importar médicos sem ter a menor noção de qual seja a qualidade deles. Eles não são avaliados e mal conseguem se comunicar com as pessoas. As cidades pequenas precisam dos melhores médicos, e não dos piores. Porque os médicos, nas cidades pequenas, não têm jeito de recorrer à sofisticação, eles precisam ser competentes.

Acredita que a expansão do programa de Saúde da Família seja benéfica para o Brasil?

Sim, desde que seja de boa qualidade. Não adianta colocar alguém que não entenda nada como médico de família. O programa precisa ser aprimorado, pois as necessidades brasileiras são muito diferentes, o País é bastante heterogêneo, com perfis econômicos e culturais completamente diferentes, e a saúde da família precisa se adequar a isso.

Como professor universitário, de que maneira vê a abertura indiscriminada de escolas médicas?

Essa é uma das maiores ofensas que se faz à saúde brasileira. Nos Estados Unidos, por exemplo, que têm mais de 300 milhões de habitantes, existem menos de 200 escolas médicas, já aqui nós tínhamos 250 mais ou menos e agora se abriram mais umas 30 ou 40, em lugares sem nenhuma infraestrutura para uma escola médica. Já faz mais de um século desde a publicação do Relatório Flexner, que resultou no fechamento de dezenas de escolas médicas norte-americanas consideradas inadequadas na época. Escolas médicas não são padarias para se ganhar dinheiro, é preciso infraestrutura para conseguir formar profissionais que atendam os interesses da população. Todas as novas escolas médicas são privadas, e a maioria das escolas do País, na faixa de 60% para mais, são particulares.

E a mesma tentativa com a residência médica?

Quem lançou a ideia dos médicos residentes nos postos de saúde é simplesmente alguém que não tem a menor noção do que seja residência médica. Não é o cara fazer estágio em uma instituição qualquer, cuidando dos doentes gratuitamente. Esse é um programa que tem que ser feito com uma supervisão altamente qualificada, 24 horas por dia, para que o indivíduo consiga realmente aprender, ter espírito crítico, analisar o doente e tomar decisões corretas. As vagas que abriram para residência médica são emprego mal remunerado, e que trazem prejuízos para a população.

“As cidades pequenas precisam dos melhores médicos, e não dos piores, porque os médicos não têm jeito de recorrer à sofisticação”

Quais são as principais consequências disso?

Estamos vivendo um momento na história da Medicina muito complicado. Cada vez mais, médicos e pacientes ficam dependentes de tecnologias avançadas e exames. A Medicina do passado, de conversar com o paciente, saber o que está acontecendo, não existe mais. Os exames antigamente eram complementares, agora o que é complementar é a avaliação clínica, o que é uma coisa absolutamente maluca, pois o ser humano continua o mesmo, apesar de toda inovação e tecnologia. Além disso, existe a Medicina defensiva, na qual os médicos, para evitar eventuais acusações de não ter tratado bem o doente, pedem um monte de exames e receitam remédios sem sentido nenhum. Aliás, o que mais recebo em meu consultório são pacientes que fizeram tratamentos para achados em exames sem nenhum significado. Não é raro pessoas que me procuram e estão tomando 15, 20 remédios diferentes, prescritos por meia dúzia de médicos, que não falam um com o outro.

Especialmente na área de Emergência, na qual o senhor é um dos grandes nomes, como avalia a atual situação e perspectivas para o futuro?

Antigamente, não existia o programa de Saúde da Família, mas as pessoas tinham seus médicos, e ligavam para eles para obter orientações, não iam aos prontos-socorros por qualquer motivo. Hoje, o pronto-socorro virou um shopping center, as pessoas vão até por uma dor de barriga, e acabam sendo atendidas às pressas, por profissionais que não têm muita experiência. Então, simplesmente são pedidos alguns exames, prescrito algum remédio e todo mundo fica satisfeito. O pronto-socorro deveria ser uma instituição sofisticada, de alto valor para o atendimento da população, mas infelizmente esses serviços prestam uma pseudoassistência.

Acredita que a má remuneração afasta os bons profissionais deste tipo de atendimento?

Não tenho dúvidas quanto a isso. Acho que a nossa profissão está subvalorizada. Recentemente, fiz um levantamento de salários de um professor da Faculdade de Medicina da USP, e são valores absolutamente ridículos pela dedicação exclusiva, em tempo integral. O que se paga por procedimentos cirúrgicos pelos planos de saúde ou SUS também é uma coisa absurda. E da mesma forma que falta estrutura e boa remuneração na assistência, falta na pesquisa. Quando você olha para os países do primeiro mundo, a vida acadêmica é uma opção viável, com remuneração decente e benefícios adequados à família. Aqui, é um mico, tem que conciliar com o consultório, plantão etc. para ganhar dinheiro.

“Escolas médicas não são padarias para se ganhar dinheiro, é preciso infraestrutura para conseguir formar profissionais que atendam os interesses da população”

Por fim, quais desafios considera os mais importantes para a Medicina hoje?

Existe um monte de desafios, mas talvez o mais importante seja a dificuldade do médico se manter atualizado, pois são tantas informações que ele recebe, nem sempre de pessoas e instituições qualificadas, que muitas vezes buscam mais a promoção de exames e medicamentos do que qualquer outra coisa. Além disso, vemos cada vez mais médicos mal formados, que vivem com salários baixos e têm vários empregos, logo não têm tempo de se atualizar.