Guido Palomba – Todo crime é uma fotografia exata e em cores do comportamento do indivíduo

Guido Arturo Palomba, diretor Cultural da Associação Paulista de Medicina e renomado psiquiatra forense, que atuou em uma série de crimes conhecidos, fala dos desafios desta área da Medicina

Entrevistas

Guido Arturo Palomba, diretor Cultural da Associação Paulista de Medicina e renomado psiquiatra forense, que atuou em uma série de crimes conhecidos, fala dos desafios desta área da Medicina

Graduado pela Faculdade de Ciências Médicas de Santos e especializado em Psiquiatria, Guido Arturo Palomba atua há 42 anos na área forense. Foi médico-chefe do antigo Manicômio Judiciário de São Paulo de 1975 a 1985, onde, segundo ele, “nasceu profissionalmente, engatinhou, aprendeu os primeiros passos e andou sozinho”. É perito nos tribunais judiciários paulistas desde 1975. Com formação em Psiquiatria de linha europeia, afirma que atualmente a área está decadente, por conta de profissionais sem capacitação devida no ramo forense, o que resulta em pareceres e laudos “imprestáveis”. Entre as dezenas de cargos acumulados ao longo da carreira, foi presidente do Departamento de Psiquiatria Forense da Associação Paulista de Medicina entre 2005 e 2006. Atualmente, é diretor Cultural da entidade, coordenador do Suplemento Cultural da Revista da APM e curador da Pinacoteca.

O senhor atua há 42 anos no ramo da Psiquiatria. Durante esse tempo de experiência, quais os avanços significativos observados?

Há áreas na Medicina extremamente evoluídas, como a Genética e a Robótica. Entretanto, outras, como a Psiquiatria, involuíram. Talvez a minha geração acadêmica foi a última com formação excelente em Psiquiatria, porque não existiam os dois pontos atuais: a classificação internacional de doenças, que nivela tudo por baixo; e a indústria farmacêutica, com interesse imenso no ramo para vender remédios. Toda a formação sólida da Psiquiatria europeia, que é de minha geração, perdeu espaço para a Psiquiatria norte-americana, na qual se inseriram as indústrias farmacêuticas. Hoje, assiste-se a uma verdadeira decadência na área, com o triunfo de uma Psiquiatria de protocolos. Não há mais psicopatologia, ou seja, um conhecimento profundo dos distúrbios mentais, mas sim os ditos instrumentos padronizados que qualquer estudante de primeiro ano de Medicina é capaz de aplicar em um paciente. A esses protocolos, ninguém escapa. Todos são portadores de algum transtorno mental. Isso permite ao médico prescrever medicamentos, algo que antes se tinha muita cautela.

A Psiquiatria Forense se divide entre civil e penal. O juiz, leigo no assunto, nomeia um profissional psiquiatra para dizer se a pessoa tem transtorno mental ou não

Em quais situações o psiquiatra forense é solicitado?

A Psiquiatria Forense se divide entre civil e penal. Civil são os casos de anulação de testamento e de casamento, guarda de menor e interdição, por exemplo. Sempre que há dúvida da sanidade mental de alguém em alguns desses processos, o juiz, que é leigo no assunto, nomeia um profissional psiquiatra para dizer se aquela pessoa tem transtorno mental ou não. O psiquiatra forense faz a intermediação entre a parte médica e jurídica. No aspecto penal, se uma pessoa comete um crime e há suspeita se ela é ou não doente mental, o juiz também nomeia um perito psiquiatra forense para analisar o caso. Em suma, com base nos pareceres e laudos, o fato terá um destino, seja no penal ou civil.

Quais as principais diferenças entre os psiquiatras clínico e forense? Como este profissional é indicado?

Existe um abismo importante entre a Psiquiatria clínica e forense. O psiquiatra clínico trata o paciente, e o forense quer saber o diagnóstico correto, o que causou aquilo e qual o prognóstico. Ele adquire essas informações e articula com a parte jurídica. O forense é indicado por nomeações judiciais, tornando-se perito do juiz, ou pode ser acionado por advogados ou promotores, que objetivam pedir um parecer psiquiátrico para ter embasamento ao processo que pretendem conduzir. Muitos psiquiatras forenses improvisados, quando chamados pelos advogados, pensam que são do Direito também, uma postura absolutamente equivocada. O psiquiatra forense é médico, e a lógica deste profissional é muito diferente da de um advogado/promotor, que atua no sentido dialético, no jogo do contraditório, para fazer a defesa. Para o médico, este raciocínio não funciona.

Em seu último livro, recém-lançado, Perícia na Psiquiatria Forense, o senhor afirma que há uma escassez bibliográfica sobre a perícia forense e cursos acadêmicos que formem devidamente especialistas na área. Essas lacunas têm comprometido pareceres e laudos detalhados e esclarecedores?

Têm sim. Como a demanda pelo judiciário é enorme, há uma escassez de profissionais bem formados na área, causando improvisações, com nomeações de psiquiatras clínicos eminentes, convocados para fazer perícias. É a mesma coisa de chamar um cardiologista clínico para fazer cirurgia. Quando o psiquiatra clínico recebe a intimação, muitas vezes, por medo, não sabe que pode recusar. Essas improvisações levam a pareceres e laudos imprestáveis. Os juízes, promotores e autoridades constituídas, que deveriam criticar esses trabalhos, não têm formação em Medicina, e com isso, acontecem equívocos que vou chamar de erros médico-jurídicos.

O senhor criticou publicamente alguns laudos psiquiátricos. Pode-se dizer que isso configura o despreparo de especialistas forenses?

São centenas de casos, a começar pelos repercutidos pela mídia, como o Bandido da Luz Vermelha, o Atirador do Shopping, o acusado de matar o cartunista Glauco, o Maníaco da Cantareira. E os casos que ninguém conhece, quando os peritos são chamados para “consertar os erros”? Eu compreendo que um psiquiatra clínico olha para o paciente e vê que não tem nada naquele momento, mas o psiquiatra forense não quer saber só do momento, ele quer saber do passado e estimar o futuro.

Sobre a classificação de criminosos, o senhor adota tipos de perfis propostos por Candido Motta (1925) e Hilário Veiga de Carvalho (1906-1978). Há uma característica predominante do criminoso brasileiro?

De fato, os sistemas mais bem-acabados de classificação de criminosos foram muito usuais até, precisamente, a primeira metade do século passado. Claro que chega um momento que se esgotam os tipos. Mas procurei fazer uma adaptação entre as classificações adotadas por Cândido Mota e Hilário de Carvalho, para tentar abranger toda a gama de criminosos. Entretanto, não gostaria de falar que há um perfil criminoso no País, porque nessas classificações usa-se também muito a influência social, cultural e psicológica. E não há um Brasil coeso, e sim “brasis”, com hábitos sociais e culturais distintos. Nesse sentido, como as diversidades regionais, crimes que não são cometidos na Região Norte acontecem no Sul, ou no interior de São Paulo e não na capital etc. E isso é mundial. Podemos chegar a um questionamento “por que assassinatos em série predominam nos Estados Unidos, por exemplo, e não acontecem com a mesma intensidade no Brasil?” Eu diria que devemos aplicar a máxima de Jung, que diz: “o cão sonha com o pão e o pescador com o peixe”. Isto é, habita no ideário cultural americano incidentes criminais daqueles que frequentemente aparecem nos noticiários, porém a deformidade mental daquele indivíduo é a mesma dos que cometem delitos aqui, na China e no Japão. Em resumo, nesses rompantes de estreitamento de consciência e liberação de agressividade dirigida dentro de uma escola, shopping ou outro local, o mecanismo mental é semelhante.

Não gostaria de falar que há um perfil criminoso no País, porque nessas classificações usa-se também muito a influência social, cultural e psicológica. E não há um Brasil coeso

Frequentemente, é convidado por diversos veículos de comunicação para justificar o que leva algumas pessoas a praticarem crimes hediondos. Há algum caso específico analisado pelo senhor que até hoje é de difícil de se esclarecer?

No começo, claro que os casos são complicados, mas depois de 42 anos fazendo isso diariamente, examinando ou escrevendo, digo que não. Podem ser mais trabalhosos, mas não são indefinidos. Por exemplo, em um caso como o do Marcelinho Pesseghini, que matou o pai, a mãe e a avó e suicidou-se, um exemplo de perícia póstuma retrospectiva, você organiza peças como se fossem quebracabeça para formar uma imagem. No caso específico, havia muito material, vindo da polícia e de depoimentos de amiguinhos de escola, da médica e das professoras. Logo de início, era possível ver a morfologia do crime, ou seja, a forma como foi praticado. Todo crime, sem exceção, é uma fotografia exata e em cores do comportamento do indivíduo, e não se pode simular porque já aconteceu. Quem manda no comportamento é o psiquismo e se eu sei ver a fotografia, terei dados psicológicos objetivos, baseados em psicopatologia séria, não na metodologia norte-americana, em que prevalecem os protocolos irresponsáveis, muitas vezes.

Em casos examinados pelo senhor direta, indiretamente ou conhecendo detalhes pormenores, há algum traço comum entre os criminosos? E em quais pontos eles se divergem?

Mesmo que haja pontos convergentes e outros divergentes, cada caso é específico. Aí está o grande desafio estimulante da Psiquiatria Forense: cada caso é um, que deve ser visto em separado, em seu aspecto biológico, psicológico, social e cultural, mas as patologias, muitas vezes, são as mesmas, não há outra possibilidade.

Publicado na Revista da APM – edição 678 – junho 2016