Mais um capítulo sombrio para as escolas médicas

A ONU preconiza 2 médicos/100 mil habitantes, o que já foi bastante superado no Brasil

Notícias em destaque

Não é de hoje que a qualidade da formação médica no Brasil preocupa. Nas últimas décadas, com a explosão de novas escolas e o aumento considerável de cursos e vagas de Medicina em instituições particulares, muitos fatos aconteceram. O capítulo mais recente desta história começou em 7 de agosto de 2023, com a publicação de relatório pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes – determinando que a abertura de cursos e vagas de Medicina em escolas privadas deverá seguir as regras do Programa Mais Médicos (Lei 12.871/2013).

Seguindo a legislação, os novos cursos e vagas deverão ser precedidos de chamamento público. Se confirmada a decisão, cuja votação em Plenário começou no dia 25 de agosto, estando prevista para conclusão ainda em setembro, o Ministério da Educação (MEC) fará uma pré-seleção de municípios. A medida possibilita, segundo o ministro Gilmar Mendes, a implantação de faculdades em regiões com poucos médicos, melhorando os serviços locais de Saúde.

O presidente da Associação Paulista de Medicina, José Luiz Gomes do Amaral, acredita que, na prática, isso não ocorrerá como esperado. “Vai acabar seguindo uma agenda política, abrindo escola onde não precisa e sempre suprindo o interesse de alguém. Em resumo, a gente vai ter

aumento de escolas médicas em um País que não precisa disso há muito tempo. Como é possível ensinar Medicina em locais que não têm médicos, professores e muito menos hospitais?”, indaga.

A Medicina continua sendo um dos cursos mais disputados nos vestibulares das instituições públicas do País. Por isso, há interesse crescente do setor privado, com mensalidades médias que variam entre 8 e 12 mil reais. “Hoje, três grandes grupos de ensino dominam as escolas médicas, inclusive, alguns com mais de 1.500 vagas. A Medicina não pode ser um negócio, desde a formação até a prática médica. Sabemos da enorme procura pelo curso, mas é preciso limitar isso aí. Somos totalmente favoráveis ao exame de proficiência [leia mais no box da pág. 11], única forma de evitar que médicos malformados saiam por aí atendendo e levando riscos à população”, pontua o vice-presidente da APM e secretário geral da Associação Médica Brasileira, Antonio José Gonçalves.

Este é um cenário que preocupa as entidades médicas, muito por conta da qualidade do ensino oferecido. Para compor uma boa escola médica, é importante a definição de critérios objetivos definidos pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), além de estrutura adequada, como hospitais de ensino e professores bem formados.

Para o vice-presidente da APM, abrir cursos via chamamento público, vinculando a lugares onde não há médicos, é uma falácia. “Vai piorar ainda mais a formação deste profissional – que já é ruim –, basta lembrar das 200 escolas que foram abertas nos últimos dez anos. A gente precisa reforçar que são localidades sem estrutura alguma para oferecer uma formação mínima adequada para o médico.”

Equívoco

De acordo com Gonçalves, a decisão recente do STF foi uma saída, talvez, que o ministro encontrou para não desagradar. “Não é possível aumentar o número de escolas e muito menos em locais remotos. Esta medida precisa ser melhor analisada. Não investiria recursos em locais com uma população pequena, porque teríamos uma utilização muito baixa. Talvez fosse melhor investir em transporte para a remoção dos doentes mais graves. É preciso pensar muito bem”, contesta.

A assessora Jurídica da APM, Francine Curtolo, ressalta que a lei do Mais Médicos, em seu artigo 3º, estabelece que o chamamento público é obrigatório antes da abertura dos novos cursos de graduação em Medicina, e que caberá ao MEC pré-selecionar os municípios que terão

autorização de funcionamento de cursos e estabelecer os critérios mínimos para a concessão da licença – levando em consideração aspectos como a relevância e a necessidade social da oferta e a existência de equipamentos públicos adequados e suficientes nas redes de atenção à Saúde do Sistema Único de Saúde (SUS). “Lembrando que, atualmente, a Portaria do MEC nº 650/2023 que regulamenta a criação de cursos na área já segue a previsão de chamamento público”, informa.

O presidente da Associação Médica Brasileira, César Eduardo Fernandes, reitera que a ideia do chamamento público para abrir escolas em locais que, em tese, têm lacunas de assistência médica é equivocada. “Essas cidades não têm estrutura para o funcionamento de cursos de Medicina. Se tivessem, mesmo assim não seria uma garantia para os egressos se fixarem nestas regiões. O recém-formado normalmente procura por residências médicas, e ainda que existam nesses locais de precariedade, eles buscariam lugares mais qualificados.”

“Temos, por ano, cerca de 40 mil médicos formados no Brasil. Considerando os 220 milhões de habitantes do Brasil, a estimativa de profissionais será 4,4 médicos/100 mil habitantes. Isso é um absurdo. Nos Estados Unidos, por exemplo, há 2,2 médicos/100 mil habitantes. Vale lembrar que o número preconizado pela Organização das Nações Unidas (ONU) é 2 médicos/100 mil habitantes. Este número muito acima vai desvirtuar o mercado de uma maneira incontrolável”, acrescenta Antonio José Gonçalves.

Pensando na distribuição dos profissionais, uma saída seria criar a Carreira de Estado para os médicos, assim como já existe do Judiciário. “Existem juízes em toda pequena cidade, porque são adequadamente remunerados e têm condições de trabalhar, que é o mais importante. Não adianta dar um estetoscópio, uma caneta e um termômetro para o médico e mandá-lo para o Alto Xingu, porque ele não fará nada sozinho. Tem que ter uma estrutura mínima para exames laboratoriais e complementares”, destaca o vice-presidente da APM.

As entidades médicas se colocam à disposição para ajudar a tratar deste tema tão relevante e atual. O presidente da AMB acredita que a decisão pode ajudar a frear de alguma forma a abertura desenfreada de novos cursos, porque se trata de uma medida tomada pelo Supremo Tribunal Federal, última instância judicial.

Apesar de a abertura de novos cursos de Medicina ter sido suspensa por cinco anos, em detrimento da moratória estabelecida pela Portaria MEC 328/2018 durante o governo Michel Temer, neste período, vagas foram criadas por meio de ações judiciais. E atualmente, o Ministério reúne mais de 300 processos neste sentido.

Conforme esclarece a assessora jurídica da APM, a decisão liminar do ministro Gilmar Mendes, relator do processo no STF, veio a partir da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC 81), movida pela Associação Nacional das Universidades Particulares (ANUP), que discute se é constitucional a previsão de requisitos para a abertura de novos cursos na área da Medicina, a partir da Lei do Mais Médicos. “A ANUP alega nos autos, entre outros pontos, que a política pública consiste em restrição constitucional ao princípio da livre iniciativa, e apontou a existência de inúmeras decisões judiciais que, mediante a invocação deste princípio, afastam a exigência de chamamento público para abertura de novos cursos de Medicina”, adiciona.

Por conta disso, Fernandes destaca que é preciso conscientizar todos os envolvidos na Educação, na Saúde, nos ministérios que cuidam destas questões e nos governos constituídos de que já temos escolas mais do que suficientes. “O caminho não é criar instituições de ensino médico, mas melhorar as existentes e fechar aquelas que não cumprirem os mínimos requisitos para a formação”, finaliza.

Exame de Proficiência

Está em tramitação no Senado o Projeto de Lei 4667/20, que dispõe sobre a aprovação do Exame Nacional de Proficiência em Medicina (ENPM) como um dos requisitos obrigatórios para o exercício legal da profissão no Brasil. Defendido pelas entidades médicas, o projeto foi apresentado à Câmara dos Deputados em 2020 pelo médico e até então deputado federal do PTB, Eduardo Costa.

O objetivo do ENPM é avaliar o conhecimento, a capacitação e a prática dos cerca de 40 mil egressos das escolas de Medicina do Brasil por ano, além dos formados no exterior que pretendem exercer a profissão em solo brasileiro. O exame de proficiência é uma medida necessária para garantir uma prática médica mais segura para os pacientes e para a sociedade.

“Vamos continuar brigando pelo exame de proficiência. É de extrema importância avaliar o conhecimento desses profissionais, ainda mais com tantas escolas médicas espalhadas por aí. As edições realizadas pelo Cremesp chegaram a ter por volta de 60% de reprovações”, pondera Gonçalves.

Amaral complementa dizendo que a Medicina tem como premissa a ética, colocando em primeiro lugar o direito da população. “E impedir que um aluno despreparado seja lançado na atividade clínica também o defende da má prática, dirigindo-o de volta à escola para que melhore ou, ainda, para uma profissão em que ele possa ter real êxito.”

Publicada na edição 739 – Agosto/Setembro de 2023 da Revista da APM