I Jornada de Dor no Homem apresenta contexto filosófico e literário da condição

A Associação Paulista de Medicina realizou, no último sábado (5), a primeira edição da Jornada de Dor no Homem. O evento faz parte da série de debates promovidos pelo Comitê Científico de Dor da instituição, a fim de apresentar assuntos relevantes e recorrentes sobre o tema

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A Associação Paulista de Medicina realizou, no último sábado (5), a primeira edição da Jornada de Dor no Homem. O evento faz parte da série de debates promovidos pelo Comitê Científico de Dor da instituição, a fim de apresentar assuntos relevantes e recorrentes sobre o tema – com a contribuição da comissão organizadora, composta pelos especialistas Telma Zakka, Camila Zakka e Rogério Adas, além de receber uma série de notáveis palestrantes.

O responsável pela palestra inicial do evento foi o clínico geral Carlos Eduardo Pompílio, que relembrou que esta foi a segunda vez que recebeu convite para falar de aspectos relacionados à dor, e que é sempre um privilégio estar presente na Associação, uma vez que o ambiente agradável permite uma troca profunda de conhecimentos de forma livre, interessante e que agrega a todos os participantes.

Desta maneira, o especialista destacou que a sua apresentação seria realizada no que tange à “Dor Crônica Masculina e a Literatura”. Relembrando o aspecto da doença, ele falou sobre a condição que leva o nome de Cadasil – acrônimo para arteriopatia cerebral autossômica dominante com infartos subcorticais e leucoencefalopatia. A Cadasil é definida como uma mutação do gene NOTCH3 no cromossomo 19, angiopatia específica não aterosclerótica, não amiloide e que envolve pequenas artérias entre 100 a 400 mícrons de diâmetro e capilares – principalmente no cérebro, mas também em outros órgãos.

O quadro clínico da patologia é uma enxaqueca de início precoce, podendo iniciar-se com encefalopatias agudas, a princípio reversíveis. Todavia, o quadro tende a se tornar crônico, passando para aspectos de alto comprometimento cognitivo, por exemplo a demência prematura. A alteração nas artérias pode levar os pacientes a terem acidentes vasculares isquêmicos, além de contribuir para a evolução de distúrbios psiquiátricos.

“Para fecharmos os critérios diagnósticos dessa doença, temos que analisar o início de Cadasil no paciente, verificar os sintomas e examinar se eles começam abaixo dos 50 anos de idade. Também temos que notar se há ausência de outros fatores que expliquem isso, e se há a presença de ao menos dois desses sintomas que são considerados neurológicos, como a enxaqueca, episódios semelhantes a acidentes vasculares encefálicos, distúrbio de humor e demência subcortical”, explicou o palestrante.

História

A dor sempre esteve presente no contexto histórico das artes, filosofia e literatura. Para comprovar isso, o clínico geral trouxe para a apresentação a trajetória de vida de uma das figuras mais marcantes neste cenário, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, nascido em outubro de 1844 e com um provável diagnóstico de Cadasil durante a sua infância – há mais de uma teoria para desvendar o quadro no qual ele se encaixava, contudo, de acordo com Pompílio, o diagnóstico da condição apresentada durante a sua palestra é o que mais faz sentido.

Na própria família de Nietzsche já havia membros que demonstravam sinais semelhantes aos que ele viria a ter no futuro. Seu pai, por exemplo, faleceu aos 36 anos de idade, vítima de sucessivas convulsões, que levaram ao comprometimento da fala e, consequentemente, a um declínio cognitivo. Além disso, o filósofo possuía uma tia com quadro psiquiátrico grave e tentativas de suicídio reincidentes em seu histórico familiar.

Sendo assim, aos nove anos de idade, o futuro pensador passou a apresentar fortíssimas cefaleias que o impediam de ler e ir à escola, dores de cabeça que o acompanhariam por toda a vida. Neste mesmo período, a mãe de Nietzsche reparou que ele era anisocórico, ou seja, sua pupila direita era maior que a esquerda, o levando a desenvolver uma infecção nas retinas, seguida por uma miopia grave. Posteriormente, o rapaz começou a sofrer de depressão e ideias suicidas, descrevendo até mesmo algumas alucinações.

Em 1889, o filósofo teve a confirmação do diagnóstico de demência paralítica após uma crise, um dos quadros mais característicos da neurossífilis, já que era portador da doença. Por isso, a concomitância de condições médicas características (como enxaqueca, distúrbios psiquiátricos, demência, acidente vascular cerebral e problemas visuais) associadas à história de problemas mentais e cognitivos em membros da sua família – inclusive com ataques epiléticos e declínio cognitivo detectados no próprio pai – favorecem facilmente o diagnóstico de Cadasil.

Friedrich Nietzsche faleceu em 1900, aos 56 anos de idade, após permanecer 11 anos internado em um sanatório na Basileia, Suíça, sem condições de cuidar de si mesmo, manter uma conversa, alimentar-se ou até mesmo se mover. “A ideia aqui é mostrarmos o que a dor crônica pode fazer de bom e de ruim para o homem. No caso de Nietzsche, que é um dos filósofos mais populares atualmente, sabemos que a dor crônica moldou a filosofia dele de uma forma muito marcante. É um dos autores mais difíceis de estudar, porque ele esparrama suas ideias e conceitos em várias de suas publicações, e quando tentamos fazer um recorte disso, corremos o risco de estarmos sendo injustos, porque não é didático, os conceitos são lançados e só somos capazes de realmente entender tudo o que ele quer dizer quando lemos toda a sua obra”, relembrou o médico.

Filosofia Nietzschiana

De acordo com o especialista, é fundamental entender que a visão filosófica de Nietzsche tem um viés completamente biológico, já que sua condição clínica tem um reflexo direto e bastante peculiar em suas obras. Pompílio salientou que há o Nietzsche crítico da cultura, do niilismo europeu, das religiões, do socratismo e da filosofia popular. Porém, a raiz de seu pensamento é eminentemente biológica, corporal e física.

Os estudos sobre o pensador demonstram que suas publicações se concentravam no quadro de dor crônica que possuía, especialmente a cefaleia de fortíssima intensidade que o acometia constantemente. Deste modo, é enorme o número de citações do autor que levam em consideração a dor e o sofrimento, as mais comumente citadas pertencendo ao que é convencionalmente chamado de “Os prefácios de Nietzsche”, de 1886.

A noção de experimento com o próprio corpo e a própria dor é muito marcante nesta figura histórica, já que ele questiona a Filosofia e tem como verdade absoluta aquilo que se entende como a filosofia de combate – na qual são feitas experiências a respeito dos limites corporais. Por isso, para entender a filosofia de Nietzsche, é preciso, primeiramente, compreender o seu contexto de vida e de que forma as coisas surgem em sua mente – por ser um homem que sentiu muitas dores, ao passo que foi um jovem promissor do ponto de vista intelectual.

“Nietzsche vai usar a interpretação do que ele chama de trágico dionisíaco. Sem isso, não somos capazes de entender como ele incorpora a dor dentro da sua própria filosofia, e fica impossível de entender a incorporação e a ressignificação da dor no contexto que ele nos apresenta. A compreensão do trágico dionisíaco é crucial para a compreensão do sentido do sofrimento da dor, já que as potências artísticas se dividem nesta ordem e na do apolíneo”, exemplificou.

Desta maneira, o palestrante ressaltou que no que se entende como cultura, o ideal de Dionísio representa as artes tonais, a dor, o êxtase, a embriaguez e o excesso, enquanto o ideal de Apolo, por sua vez, se configura como as formas perfeitas, claras, luz, retidão moral e triunfo da racionalidade, ou seja, um jeito “bonito” de representar o sofrimento – venerando a ideia de que uma pessoa não tem como ser feia e boa, ao passo que não há como ser ruim e bonita, teoria quebrada por Nietzsche ao retratar a sua história pessoal de dor e sofrimento; sem desvalorizar o corpo em detrimento a algo idealizado, já que precisa do corpo para traduzir aquilo que acontece com ele, reafirmando a potência do dionisíaco em sua vida.

Segundo as teorias do filósofo, a experiência fundante da arte é a do sofrimento e do inferno destrutivo transfigurado em beleza, de uma forma que toda cultura científica baseada na racionalidade lógica é uma transfiguração e uma tentativa de mascarar o olhar lançado no que se entende como dionisíaco. Para Nietzsche, isso se define como a sabedoria da alternância entre luz e sombra, vida e morte, sofrimento e felicidade, bem e mal, saúde e doença.

“Nossa existência está fadada à dor e ao sofrimento por uma dupla condição. Sentimos dor porque sem ela não temos sentido nenhum para estar aqui, e Nietzsche consegue incorporar a dor nessa forma, nessas alternâncias, por isso é importante ressaltar a dor crônica, porque ela vai e vem e são nos períodos de melhora que o autor fica mais aguçado, sabe melhor o que é saúde e entende mais profundamente o seu corpo, fazendo um diagnóstico mais eficiente de tudo aquilo que existe ao seu redor”, destacou o especialista.

Ao se encaminhar para o final da apresentação, Carlos Pompílio evidenciou que ao sublinhar a visão de mundo para o terreno da luz, beleza, vida, racionalidade clara e científica, deixa-se de incorporar o feio, o sofrimento, a morte e a dor, e as coisas passam a perder o significado. A Ciência e a racionalidade lógica constituem-se apenas em um outro gênero de ilusão e consolo metafísico.

É por esta razão que Nietzsche diz que só há uma saída e uma justificativa aceitável para a existência: a estética. Para o pensador, a vida é como uma sinfonia em totalidade, que ao se tirar uma nota, ela para de fazer sentido e é apenas quando os seres humanos passam a assumir cada instante de sua própria existência como se fosse a eternidade, que a sua vivência passa a ter um significado efetivo. Então, religião, Ciência e racionalidade não são suficientes para Nietzsche, mas sim uma mistura de júbilo e dor profunda, capazes de transfigurar uma pessoa.

A conclusão da palestra de abertura ficou por conta da leitura do parágrafo de uma poesia de Paulo Leminski, que detalha o que é a dor no homem: “Um homem com dor é um homem muito mais elegante, caminha assim de lado, como se chegando atrasado chegasse mais adiante, carrega o peso da dor como se portasse medalhas, uma coroa, um milhão de dólares ou coisa que os valha. Ópios, édens, analgésicos, não toquem nessa dor, ela é tudo o que me sobra. Sofrer vai ser a minha última obra”. 

Ao longo do dia, o evento abordou temas como Neurobiologia da dor e particularidades do comportamento doloroso masculino; Endocrinopatias e obesidade: a dor pode vir pela boca?; O sono é bom conselheiro: os distúrbios do sono e as condições dolorosas; Dores na coluna vertebral e ciclo de vida masculino; Afecções urológicas masculinas dolorosas; Atividade física, saúde e dor: prevenção primária e secundária; E quando a dor pélvica se torna dor crônica? O olhar do especialista; Dor crônica masculina: o médico e o paciente; Dor crônica masculina: o médico e as letras; Depressão e dor no sexo masculino: homens não são de reclamar?; Particularidades da cefaleia no sexo masculino; Homens têm dificuldade em expressar a dor?; e Dor e Música.

Fotos: BBustos Fotografia