Em abril deste ano, foi estabelecida pelo Conselho Federal de Medicina uma resolução proibindo o procedimento de assistolia fetal no Brasil – nos casos em que o método é liberado por lei. No entanto, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, suspendeu a medida, ocasionando uma votação, aprovada com caráter de urgência, a fim de decidir o destino do projeto de lei que estabelece o aborto realizado após 22 semanas de gestação como crime de homicídio (PL Nº 1904/24). Neste sentido, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) alega que o projeto é inconstitucional.
A assistolia fetal consiste em um processo pré-abortivo em que produtos químicos são injetados no feto para interromper os seus batimentos cardíacos e evitar que este nasça com sinais vitais. O procedimento tem o respaldo da Organização Mundial da Saúde (OMS) e segurança cientificamente comprovada por meio de protocolos nacionais e internacionais para os casos de abortos legais.
No Brasil, o aborto é assegurado em três diferentes situações, definidas por meio do artigo 128 do Decreto Lei nº 2.848 de 07 de dezembro de 1940. Elas se dividem entre os casos em que há riscos para a saúde da mulher; quando o feto é anencéfalo, ou seja, não possui cérebro; e quando a gravidez é consequência de um estupro.
Estudo de 2023, realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), aponta que a ocorrência de abusos sexuais no País é um problema trágico e alarmante. De acordo com a pesquisa, estima-se que, anualmente, 822 mil mulheres sejam estupradas – valor que equivale a dois casos por minuto e, segundo especialistas que participaram da análise, tem tendência de estar subnotificado.
Além disso, o Ipea também calcula que, destes 822 mil casos, somente 8,5% chegam às autoridades policiais e apenas 4,2% ao sistema de saúde. Não obstante, a maior parte dos casos de estupro acontece contra jovens de 13 anos, pretas e pardas, em situação de vulnerabilidade social e por familiares e conhecidos – em 2021, o percentual das vítimas era de 52,2%, em 2022, o índice foi para 56,8%.
O Instituto demonstra que as vítimas, além de ficarem desassistidas, também passam a apresentar quadros de depressão, ansiedade, impulsividade, distúrbios alimentares, sexuais e de humor, além de alterações na qualidade do sono e tendência a comportamentos suicidas associados à violência sexual.
Pareceres
A situação fez com que alguns órgãos demonstrassem a sua opinião sobre o tema. No dia 17 de junho, o Conselho Pleno da Ordem dos Advogados do Brasil, composto por 31 membros, publicou um parecer que define a pauta como inconstitucional, inconvencional e ilegal.
O documento diz que a “criminalização pretendida configura gravíssima violação aos direitos humanos de mulheres e meninas, duramente conquistados ao longo da história, atentando flagrantemente contra valores do estado democrático de direito e violando preceitos preconizados pela Constituição da República de 1988 e pelos Tratados e Convenções Internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Estado brasileiro”.
O conteúdo do parecer também aponta que o PL não considera os empecilhos e burocracias encontrados para mulheres e meninas vítimas de estupros que não conseguem obter acesso para o aborto legal. “O PL não se preocupou com a possibilidade de uma descoberta tardia da gravidez, fenômeno comumente percebido nos lugares mais interioranos dos Estados brasileiros, ou ainda, com a desídia do Estado na assistência médica em tempo hábil.”
Em nota oficial, a Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) também se manteve contrária à determinação do Conselho Federal de Medicina. Segundo a entidade, “um tema de tamanha importância necessita de uma ampla discussão prévia. Portanto, a Febrasgo solicita que o PL 1904/2024 seja retirado de pauta na Câmara Federal, e se posiciona contra a criminalização da mulher nessa situação de vulnerabilidade.”
Como forma de apoio, a Sogesp (Associação de Obstetrícia do Estado de São Paulo), por meio de nota, está em acordo com o posicionamento publicado pela Febrasgo sobre a condução do Projeto de Lei Nº 1904/2024. De acordo com a entidade, a retirada deste projeto do regime de tramitação de urgência na Câmara dos Deputados é fundamental para que seja realizada uma discussão ampla envolvendo as sociedades científicas, a sociedade civil e o sistema Judiciário.
Repercussão
A pauta gerou uma intensa movimentação em variados âmbitos das sociedades, nas diferentes regiões do País, fato que motivou o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), a determinar que a votação do projeto não deve ocorrer nos próximos meses. Todavia, estipula a criação de uma comissão para o debate acerca do tema – prevista para iniciar durante o segundo semestre, após o recesso parlamentar que, até o fechamento desta matéria, ainda não havia sido finalizado.
Em entrevista coletiva, Lira ressaltou a necessidade de “reafirmar a importância do amplo debate. Isso é fundamental para exaurir todas as discussões, para se chegar a um termo que crie, para todos, segurança jurídica, humana, moral e científica sobre qualquer projeto que possa vir a ser debatido na Câmara”. Afirmou, ainda, que o projeto não prejudicará os direitos já garantidos e nem avançará para trazer danos às mulheres, por isso, a comissão é vista como uma forma de analisar de maneira aprofundada as implicações sociais e legais da questão.
Apesar de proibido, o aborto é realizado no Brasil por meio de clínicas clandestinas e pela circulação ilegal de medicamentos abortivos. O Sistema Único de Saúde é responsável por atender a maior parte dos procedimentos malsucedidos, que, novamente, recaem sobre a população preta e pobre do País. Por este motivo, algumas medidas podem ser fundamentais para diminuir a prevalência desses casos, como:
• Melhorar a educação sexual de crianças e adolescentes;
• Aumentar a punição para estupradores;
• Alavancar a segurança jurídica de mulheres que buscam ajuda no sistema de Saúde ou no Judiciário;
• Mobilização coletiva acerca do tema, salientando a importância do consentimento;
• Garantir acesso aos serviços de apoio. A Associação Paulista de Medicina está acompanhando ativamente a discussão e se mantém atenta a todos os movimentos e modificações, posicionando-se ao lado da Sogesp e da Febrasgo.
Publicado na edição 745 Jul/Ago 2024 da Revista da APM