O analista de sistemas Mostafe Amade tinha apenas 11 meses de idade quando seu pai reparou que ele possuía uma série de sintomas suspeitos, como febre, diarreia e instabilidade nas pernas. Não tardou para que o médico confirmasse o diagnóstico, era poliomielite. Por recomendação, a família de Mostafe, natural de Tupã, município localizado no interior do estado de São Paulo, veio com ele para a capital a fim de realizar o acompanhamento no Hospital das Clínicas – local que, conforme relembra, fazia as filas darem voltas no quarteirão com mães de crianças de colo que esperavam por atendimento, tão violenta era a epidemia. Isso tudo aconteceu em 1957.
No Brasil, a vacina contra a pólio começou a ser aplicada em 1955, por meio do imunizante inativado chamado Salk – homenagem ao seu desenvolvedor, o epidemiologista Jonas Salk – porém, de forma muito restrita. Foi apenas na década de 1980 que as amplas campanhas de vacinação passaram a ganhar força, graças ao Programa Nacional de Imunizações (PNI) e à 1ª Campanha Nacional de Vacinação Contra a Poliomielite, fazendo com que o último caso da doença fosse registrado em 1989 e que, em 1994, o País, junto com outras nações localizadas na região das Américas, fosse condecorado com o certificado que reconhecia a eliminação do vírus tanto no território nacional quanto no continente.
Segundo dados da FioCruz, o Brasil não cumpre a meta de 95% do público-alvo vacinado desde 2015. Dados levantados pelo Ministério da Saúde, por sua vez, demonstram que a taxa de crianças sem cobertura vacinal diminuiu entre 2022 e 2023, passando de 243 mil crianças não imunizadas (9,5%) para 152,5 mil (6,3%). Apesar do tênue avanço, a situação ainda preocupa especialistas da Saúde, visto que, mais uma vez, a meta não foi alcançada.
O secretário da Sociedade Paulista de Infectologia, Rodrigo Santana, relembra alguns dos fatores que podem estar associados à baixa adesão vacinal. “Há tempos, existem movimentos nos Estados Unidos e em países da Europa contra as vacinas. Historicamente, o Brasil sempre foi reconhecido pelas altas coberturas vacinais e pela valorização das suas campanhas e investimentos em vacinação da população. No entanto, esses movimentos antivacina ou de hesitação têm crescido no País, especialmente no cenário pós-pandemia.”
O médico ainda reforça que tal fenômeno pode ser explicado por uma combinação de fatores, como desinformação, disseminação de informações falsas sobre segurança e eficácia dos imunizantes, uso político do tema, desconfiança nas autoridades de Saúde, falta de conhecimentos sobre os benefícios das vacinas e a gravidade das doenças que elas previnem. “Temas como vacinação, assim como outras questões de saúde pública, devem ser tratados de forma técnica e sem vieses políticos, filosóficos ou culturais. Sabemos que é um grande desafio.”
A pediatra e sanitarista Melissa Palmieri corrobora com o ponto de vista e destaca que a recusa vacinal é multifatorial. “As pessoas não têm mais aquela percepção de risco, porque a doença não existe mais. Mas nós temos que continuar mantendo a alta cobertura vacinal para mitigar o risco. Vemos, depois da pandemia, um fenômeno que podemos chamar de ‘fadiga vacinal’, pessoas que falam que não vão tomar vacina, e isso é um risco social, porque precisamos todos estar em dia com as vacinas para poder controlar a circulação desses agentes.”
Além disso, ela também pontua a baixa adesão ao problema de acesso. “A jornada de trabalho dos pais geralmente se estende até as 19h00, horário em que os postos já estão fechados. Além disso, a maioria das cidades mantém o funcionamento dos mesmos de segunda a sexta-feira, com exceção de municípios como São Paulo, que possibilitam a vacinação aos sábados.”
Sintomas e sequelas
A poliomielite é uma doença altamente infecciosa, provocada pelo poliovírus. Ela é transmitida por meio do contato direto com fezes, secreções eliminadas por pessoas acometidas ou água e alimentos contaminados. Rodrigo Santana salienta que “condições sanitárias, habitacionais e de higiene precárias são fatores para a transmissão.” A vacinação é a única forma de prevenção e, atualmente, há dois países em que a doença ainda prevalece como endêmica, Afeganistão e Paquistão.
A doença é responsável por afetar os neurônios motores, encarregados pela contração muscular na medula espinhal. Apesar de um percentual mínimo de pacientes desenvolver as sequelas graves ou apresentar sintomas, é fundamental se manter imunizado – levando em consideração que, ao evoluir para a forma grave, a infecção pode causar sérias sequelas, como paralisia dos membros inferiores, e, em casos extremos, óbito ao paralisar os músculos que controlam a respiração.
Dos casos em que há sintomas, nos mais leves os indivíduos podem apresentar quadros de febre, dor de cabeça, dor de garganta e fadiga. Já nos mais graves, pacientes podem apresentar sintomas semelhantes à meningite, havendo o risco da evolução para a paralisia; neurônios motores também podem ser acometidos, ocasionando a paralisia da musculatura do tórax e levando à insuficiência respiratória. Além disso, há a síndrome pós-poliomielite, em que os acometidos apresentam piora da fraqueza muscular, mesmo após a estabilidade da doença.
“É importante ressaltar que não existe um tratamento específico pelo poliovírus, portanto, o tratamento é baseado em medidas de suporte, podendo ser necessária terapia intensiva em casos mais graves. Por isso, fica claro que as medidas de prevenção são tão importantes”, elucida Santana.
Mostafe Amed, que por praticamente toda a vida teve que conviver com as consequências da pólio, é prova disso. Hoje, com 67 anos de idade, ele passou por 10 cirurgias para corrigir as sequelas da doença – a primeira delas, por volta dos oito anos de idade, feita por Renato Bomfim, fundador da Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD). Amed, que utiliza duas órteses e anda com duas bengalas, relembra que, no começo, andava com o auxílio de muletas, além de já ter realizado tratamentos com massagens, ginásticas e fisioterapias, sem contar os auxílios fornecidos pela AACD.
“De fato, na AACD você aprende a ter uma vida independente, a cair, a levantar, a subir e descer de ônibus. É muito importante para manter a individualidade e independência”, relata. Ele conta que tem alguns movimentos da perna direita, conseguindo abrir e fechá-la enquanto está sentado e esticar o pé, com a esquerda, por sua vez, o movimento é praticamente zero. “Se elas fossem iguais, eu teria tido uma qualidade de vida melhor. Eu tenho uma limitação, mas por conta dos meus pais me levarem a tudo quanto é especialista e me darem muito apoio, eu tentava fazer o máximo que eu podia.”
Importância da vacinação
Apesar do suporte familiar e por lutar para ter uma vida normal dentro do possível, Mostafe relembra que conviver com as consequências da pólio é algo duro, repleto de desafios diários. “Você nunca vence a pólio, você vai vencendo os dias. Por exemplo, se vai em um lugar novo e vê uma porta, pensa ‘como eu abro aqui? Com o ombro? Seguro um pouco com o pé?’ Eu usei excessivamente o meu braço para fazer o lugar da minha perna e hoje pago a conta disso, sinto dores. A pólio é assim, uma batalha diária.”
Para ele, pais que não vacinam crianças estão condenando os filhos. “Na minha época, não tinha vacina, mas meus pais fizeram o possível por mim. Hoje, você tem a opção da vacinação e se você não vacinar, está condenando a uma vida muito difícil. Eu me pergunto que legado esses pais querem deixar”, relata Mostafe.
“Eu via casais andando de mãos dadas e eu nunca pude. Eu via as pessoas dançando e não podia dançar. Quando era criança, meus primos andavam a cavalo ou brincavam de correr e eu tinha que fingir que não ligava. Eu já sabia das minhas limitações desde muito cedo, isso me chateava um pouco”, diz, evidenciando que, mesmo diante das perdas ocasionadas pela pólio, também teve muitas conquistas.
Hoje, casado, pai de dois filhos e formado em Matemática pela Universidade de São Paulo, Amed destaca que uma das maiores vitórias de sua vida foi quando levou o filho mais velho para se vacinar contra a poliomielite. “Na hora em que foi vacinar, eu olhei para a minha esposa e falei, com lágrimas nos olhos, ‘ele está livre da pólio’. É uma emoção gigante. É uma realização ver a vida dos meus filhos e fico feliz por eles terem coisas que eu não tive.”
Essas histórias se entrelaçaram quando Melissa Palmieri foi pediatra da família Amed e, com muito carinho, lembra a importância que todos da família sempre tiveram com relação à vacinação.
Como médica e sanitarista considera um possível retorno da pólio um grande retrocesso de todas as conquistas que o País obteve desde 1989. A médica evidencia que a informação é a melhor maneira para converter a situação. “Informação muda comportamento. Precisamos orientar pais a estarem em dia com a carteira de vacinação e os profissionais de Saúde para que estejam alertas para qualquer risco de detecção e suspeita da doença para acionarmos rapidamente as medidas de controle pertinentes.”
Por sua vez, Rodrigo Santana enfatiza que não deve ser tolerada nem mesmo a hipótese de o Brasil voltar a registrar casos da doença. “Cada indivíduo é responsável quando o assunto é saúde pública ou global. Um dos grandes benefícios das vacinas é proporcionar a imunidade de rebanho ou imunidade coletiva. Isso significa que, quando uma proporção elevada de indivíduos de uma comunidade está imunizada contra uma doença, eles ajudam a prevenir que o agente infeccioso atinja aqueles que não puderam ser vacinados”, completa.
Texto: Julia Rohrer
Publicado na edição 745 Jul/Ago 2024 da Revista da APM