Aborto: uma visão médica, política e religiosa

Convidamos especialistas das três áreas para abordarem o tema à Revista da APM

Entrevistas

O aborto é assunto polêmico, que envolve discussões nos âmbitos moral, ético, científico, religioso e filosófico. No Brasil, o abortamento induzido, que decorre da própria escolha da gestante de interromper a gravidez, é considerado crime contra a vida, conforme prevê os artigos 124 e 128 do Código Penal. A mulher pode ser presa por um período de 1 a 3 anos e o médico de 3 a 10 anos. No entanto, é permitida a interrupção em casos específicos resultantes de estupro, quando se põe em risco a vida da mulher ou gestação de feto anencefálico.

Em diversas partes do mundo, a descriminalização do aborto ganha força – como ocorreu por exemplo na Argentina, em dezembro último. Por isso, a Revista da APM ouviu três profissionais, das áreas médica, jurídica e religiosa, sobre o assunto. São eles: Luiz Eugênio Garcez Leme, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e 4 o vice-presidente da Associação Paulista de Medicina; Michelle Porto de Medeiros Cunha Carreiro, juíza de Direito auxiliar da capital de São Paul; e Márcio Barbosa Rigolin, pároco da Paróquia de São Pedro, em Franca/SP – que teve consultoria de Helen Barbosa Raiz, docente do Programa de pós-graduação em Serviço Social da Unesp/Franca.

REVISTA DA APM: Qual sua opinião sobre a descriminalização do aborto no Brasil? 
LUIZ EUGÊNIO GARCEZ: Acredito que o tipo de discussão que incorpora problemas bioéticos complexos – como o abortamento provocado, a eutanásia e outros temas polêmicos – raramente se beneficia de discussões superficiais do tipo sou a favor ou sou contra. Nesses casos, os argumentos são cristalizados em ambos os campos e são repetidos de maneira mais ou menos automática, impossibilitando um verdadeiro diálogo construtivo entre grupos impermeáveis, em um modelo que eu chamo de bioética denunciativa. De minha parte, sempre busquei uma bioética propositiva. Desta forma, posso dizer que, como médico, apoio um efetivo suporte à gestante e ao nascituro, preservando as vidas físicas e biológicas de mães e crianças

MICHELLE PORTO CARREIRO: Atualmente, judicio em uma vara especializada em júri, que julga os crimes de aborto. No entanto, o Estatuto da Magistratura me impede de dar opiniões sobre processos em curso ou temas sobre os quais eu possa vir a julgar.

MÁRCIO BARBOSA RIGOLIN: Antes de responder às perguntas propostas, algumas premissas bíblicas e da Tradição da Igreja. O quinto mandamento, “Não matarás” (Ex 20,13; Dt 5,17) se aplica também ao não nascido: “É já homem também aquele que ainda deve nascer” dizia Tertuliano, um Padre africano do século II. Aliás, nessa sua obra, chamada Apologético, Tertuliano é ainda mais explícito: “Quanto a nós a quem é vedado todo o homicídio, também nos é proibido matar o feto no ventre de sua mãe, mesmo antes de o homem estar totalmente formado. Impedir o nascimento é um assassínio prematuro”. A vida humana, já desde o seio materno, está ante o Senhor, como canta o salmista: “Sim! Pois tu formaste os meus rins, tu me teceste no seio materno. Eu te celebro por tanto prodígio, e me maravilho com as tuas maravilhas! Teus olhos viam o meu embrião. No teu livro estão todos inscritos os dias que foram fixados e cada um deles nele figura” (Sl 139,13-16).

Desde o começo de sua história, o cristianismo estendeu a proibição de matar do Decálogo até a vida da criança não nascida. A Didaqué, o primeiro catecismo da Igreja, do século I, já dizia: “Não mate a criança no seio de sua mãe, nem depois que ela tenha nascido”. Por fim, o delicioso texto da Carta a Diogneto, onde no cap. V, sobre a vida dos cristãos, se lê: “Casam-se como todos os homens e como todos procriam, mas não rejeitam os filhos. A mesa é comum; não o leito”.

O posicionamento que expressamos aqui não é de nossa autoria, mas retrata a verdade que a Igreja professa através do Magistério, da Escritura e de todos os seres humanos que comungam desta verdade e dedicam suas vidas à defesa da sacralidade da vida. Sendo assim, consta no Catecismo da Igreja Católica 2270: “A vida humana deve ser respeitada e protegida de maneira absoluta a partir do momento da concepção. Desde o primeiro momento de sua existência, o ser humano deve ver reconhecidos os seus direitos de pessoa, entre os quais o direito inviolável de todo ser inocente à vida”.

Quais seriam as melhorias ou retrocessos caso essa pauta avançasse no País?
GARCEZ: Creio que a verdadeira pauta a ser discutida deveria ser sobre as alternativas possíveis ao abortamento provocado: política efetiva de apoio à adoção, de apoio social e psicológico à gestante frágil; e de acesso às jovens grávidas a treinamento profissional estruturado e de creches para mães carentes que precisem trabalhar. Encaminhada essa realidade, a discussão sobre abortamento certamente teria outra densidade, evitando tentar resolver um grave problema social pelo simples abandono de mães frágeis e eliminação de crianças inocentes.

MICHELLE: A discussão sobre o tema é muito relevante para a sociedade, apesar de atualmente ter sido instalada uma polaridade um tanto exacerbada entre os defensores da ideia e aqueles contrários a ela. De qualquer modo, acho válido todo envolvimento da sociedade em temas que nela tocam, em especial como esse, que tem tanta implicação em questões como saúde pública, direitos da mulher e do nascituro (termo jurídico para feto) e configuração das estruturas familiares, entre outros. A sociedade é mutável e temas assim, tão intrinsecamente ligados a costumes e religião, sempre devem ser revisitados, de acordo com os valores estabelecidos naquele momento histórico. Mas é de se anotar que a pauta é mais política do que jurídica e, ainda que observada pela ótica do Direito, deve-se compreender que a ciência jurídica (ao contrário da Medicina, por exemplo) não é vanguarda, sempre anda atrás das mudanças sociais, sempre depois de elas terem sido já assentadas.

PADRE MÁRCIO: Mais uma vez, insistimos em manifestar que nosso compromisso é a favor da vida humana e, segundo a Constituição Pastoral do Concílio Vaticano II (Gaudium et Spes – Alegria e Esperança, 51), se faz necessário que a sociedade brasileira tome ciência e consciência de que: “Existem os que ousam trazer soluções desonestas a esses problemas e não recuam até mesmo diante da destruição da vida. Deus, com efeito, que é o Senhor da vida, confiou aos homens o nobre encargo de preservar a vida para ser exercida de maneira condigna do homem. Por isso, a vida deve ser protegida com o máximo cuidado desde a concepção. O aborto, como o infanticídio, são crimes nefandos”.

Acredita que a sociedade brasileira está pronta para esta discussão? Por quê?
GARCEZ: Creio que não está. Vivemos um momento de confronto permanente e quase patológico por grupos extremistas, que têm uma visão maniqueísta da realidade: a cultura do nós ou eles. Por outro lado, creio que a maioria da população brasileira é contrária a este tipo de pauta que, muito provavelmente, seria polarizada, com prejuízo principalmente dos mais frágeis, geralmente os mais sujeitos à degradação e ao risco de soluções aparentemente simples.

MICHELLE: A discussão é sempre positiva, até para que as pessoas tenham consciência de sua participação social, de seus direitos e deveres e das implicações macro das condutas individuais. O que não considero profícuo (do ponto de vista político ou jurídico) é que o debate seja tão polarizado como hoje. Do modo como tem sido colocado por ambos os posicionamentos, a opinião contrária não é sequer ouvida, quanto mais considerada para o fim de amadurecimento. O momento político que vivemos mundialmente também não parece propício a isso.

PADRE MÁRCIO: Na nossa opinião, a sociedade brasileira não tem uma cultura de participação democrática. Segundo George Mazza (2018): “Seguindo a mesma estratégia utilizada em outros países, o Movimento Pró-Aborto Brasileiro inicialmente concentrou as tentativas de legalização no Poder Legislativo (Câmera dos Deputados e Senado Federal). Como havia e ainda há uma rejeição natural do aborto por parlamentares dessas Casas Legislativas, os abortistas redirecionaram suas ações para o Poder Judiciário, em que poucos juízes, sem qualquer representatividade do povo, julgam livremente e sem objeção de consciência. O Movimento Pró-Aborto vem conquistando espaço na aprovação desta prática em nosso Poder Judiciário, principalmente no Supremo Tribunal Federal (STF). Paralelamente a esses esforços políticos e jurídicos para a legalização do aborto, diversas organizações não governamentais brasileiras atuam na busca pela legalização da prática perante os três poderes e, também, na sociedade civil.”

Atualmente, o aborto é garantido no Brasil em caso de abuso sexual, quando há risco de vida para a mulher ou em caso de fetos anencéfalos. Entretanto, esse direito muitas vezes é contestado por grupos contrários. Quais são os diálogos necessários para se fazer com a sociedade neste sentido?
GARCEZ: Se perguntarmos a representantes de ambos os lados na polêmica do abortamento provocado o que eles estão defendendo, não tenho dúvida que ambos responderão: a vida! Do lado da defesa da mãe e da sociedade que a cerca, efetivamente uma gravidez indesejada pode ser um gravíssimo problema, particularmente quando está ligada a casos de abuso sexual, principalmente em menores ou mulheres com limitações cognitivas, ou quando se prevê no nascituro, com as limitações que têm os métodos diagnósticos, algum tipo de problema. Do lado do nascituro, não é possível imaginar que a sua característica condição humana, que lhe dá a dignidade e os direitos inerentes, possa ocorrer em algum outro momento que não seja o da concepção. Penso que uma primeira questão a ser respondida por ambos os lados seria: O que fazer nestes casos para que as condições, biológicas e biográficas, das vidas envolvidas sejam protegidas? Oferecer o abortamento é, em uma visão simplista o mais fácil, o mais barato e também o que menos leva em conta a condição da frágil da mãe o os direitos da criança, mas será o melhor?

MICHELLE: O Código Penal brasileiro (Lei de 1941) prevê o aborto legal em casos de estupro e de risco de vida para a mãe. O Supremo Tribunal Federal ampliou a possibilidade para os casos de fetos anencéfalos sem tocar na discussão sobre o aborto em si, mas sob o fundamento de que não tratar-se-ia de vida a ser preservada (já que a morte cerebral, por lei, seria o termo final da vida, de modo que um feto sem cérebro nem sequer poderia ser considerado vivo). Há quem amplie ainda mais a licitude do aborto para casos em que a vida extrauterina seja inviável. O debate jurídico é, assim como o político, farto de argumentos. Na maioria dos casos, entretanto, a análise jurídica é subsidiada pela análise médica (laudos e exames clínicos, laboratoriais e de imagem). É uma ciência (o Direito) interagindo com outra (a Medicina).

PADRE MÁRCIO: Gostaríamos de responder a essa pergunta apresentando trechos do discurso de Santa Teresa de Calcutá (1910 -1997) no Congresso Internacional “National Prayer Breakfast”, sediado em Washington, em 1994: “Não somente se mata a vida, mas nos colocamos mais altos do que Deus; os homens decidem quem deve viver e quem deve morrer. O aborto pode ser combatido mediante a adoção. Quem não quiser as crianças que vão nascer, que as dê a mim. Não rejeitarei uma só delas. Encontrarei pais para elas. Ninguém tem o direito de matar um ser humano que vai nascer: nem o pai, nem a mãe, nem o estado, nem o médico. Ninguém. Nunca, jamais, em nenhum caso. Se nós aceitamos que uma mãe pode matar seu próprio filho, como é que nós podemos dizer às outras pessoas para não se matarem?”.

Como enxerga a questão de saúde pública envolvendo os abortos clandestinos (uma vez que os recursos para tratar as complicações acabam sendo maiores do que se o procedimento fosse descriminalizado)?
GARCEZ: O abortamento provocado é, antes de tudo, um grave problema ético. Muitos países puderam observar, após a legalização do abortamento provocado, que o índice de abortamento clandestino e suas complicações não chegou a se reduzir notavelmente pela simples razão de que algumas gestantes não se dispõem a tornar pública sua gestação, como no caso de situações extraconjugais ou medo de reprovação social. A dúvida que se coloca quando se considera o conceito de “problema de saúde pública” é: está se levando em conta as complicações para a mãe ou para o nascituro? No tocante à mãe, as complicações do abortamento provocado são, de fato, a terceira causa de morte, não entre as mulheres em idade fértil, mas em gestantes. Ocorre que o total de mortes entre as gestantes é muito baixo. Desta forma, ao se considerar os problemas gerais de saúde pública de mulheres em ida – de fértil no Brasil, na atualidade, a inserção dos problemas do abortamento provocado dificilmente se colocaria entre as 15 ou 20 mais prevalentes. Deve-se, é evidente, estar atento e abordar este tipo de problema, assim como os outros, com intervenção proporcionada à sua importância. Já no tocante ao nascituro, não há muito o que se discutir: a mortalidade é de 100%. Assim, em minha percepção, o abortamento provocado seria, sim, um problema grave e pungente de saúde pública desde que se considerasse a mortalidade do nascituro, representando, desta forma, um grave problema bioético.

MICHELLE: Do ponto de vista jurídico, os abortos clandestinos são considerados crimes e as penas podem ser impostas à mãe, à pessoa que realizar o procedimento ou ministrar medicamento e a um terceiro que induza, instigue ou preste auxílio mate – rial ou moral ao ato (no caso, por exemplo, o parceiro da gestante que sugira o aborto, pague por ele ou pela medicação; ou mesmo uma amiga que a leve ao local onde o procedimento será realizado). Os custos para tratar eventuais complicações decorrentes do ato não são considerados juridicamente, até porque o Direito não trabalha apenas com a lógica econômica, mas também (e talvez principalmente) com implicações morais e sociais das condutas humanas. Pensar de outro modo inviabilizaria a imposição de penas privativas de liberdade (cuja execução é caríssima ao Estado) a inúmeros outros crimes, o que é o argumento de várias teses pela descriminalização de condutas.

PADRE MÁRCIO: Gostaríamos de ressaltar que o número de mortes de mulheres em decorrência de outras patologias supera em muito as mortes por aborto. Frente a essa realidade, se há um desafio de saúde pública que deveria receber ênfase do poder público é o número de mulheres que venham a óbito em decorrência de outras patologias. Assim como o investimento da saúde pública deve se centrar em políticas que priorizem a gestação, o amparo à gestante e ao nascituro, e não ampliar o aborto “legal”. Porque, ao legalizá-lo, teríamos outras questões de saúde pública, entre elas, várias patologias físicas e emocionais à mulher.

O ABORTO NO MUNDO
SEM RESTRIÇÃO DE SEMANAS – Austrália (cada estado decide as restrições em termos de semanas), Canadá, China, Coreia do Norte, Estados Unidos (cada estado decide as restrições em termos de semanas).
ATÉ A 10ª SEMANA – Bósnia e Herzegovina, Croácia, Cuba, Eslovênia, Portugal e Turquia.
ATÉ A 12ª SEMANA – África do Sul, Albânia, Armênia, Áustria, Azerbaijão, Bahrein, Bulgária, Cabo Verde, Cazaquistão, Dinamarca, Eslováquia, Estônia, Geórgia, Grécia, Irlanda, Islândia, Itália (entre 12ª a 13ª semana), Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Macedônia, Moçambique, Moldávia, Mongólia, Montenegro, Nepal, Noruega, Porto Rico, Quirguistão, República Tcheca, Rússia, Suíça, Tajiquistão, Tunísia, Turquemenistão, Ucrânia, Uruguai (até 14ª em casos de estupro), Uzbequistão e Vietnã.
ATÉ A 14ª SEMANA – Alemanha, Argentina, Bélgica, Camboja, Espanha, França, Guiana Francesa, Kosovo e Romênia.
ATÉ A 18ª SEMANA – Hungria e Suécia.
ATÉ A 24ª SEMANA – Holanda e Singapura.
ATÉ A 28ª SEMANA – Bieolorrússia.
Fonte: Editora Abril

Publicada na edição 725 – mar/abr de 2021 da Revista da APM
Fotos: BBustos Fotografia / Divulgação / Lucimar Ferreira