Um vídeo recente publicado pelo Canal Foco, que se autodenomina “um canal de dinâmicas e conversas reais”, chamou minha atenção – não de forma positiva. Intitulado de “1 treinador vs 30 gordos’’, ele trouxe um profissional de educação física, fundador de um movimento contra a obesidade no Brasil, para debater com 30 indivíduos acima do peso. Se você não viu, aqui vai um spoiler: é um circo de horrores e um show de gordofobia. O mais chocante é que ele recebeu o apoio de muita gente da área da saúde, escancarando um problemão: somos intolerantes a pessoas com obesidade.
Esse vídeo traz à tona o quanto nós, como sociedade e, mais especificamente, profissionais do exercício, temos contribuído para o agravamento da obesidade. Ele também mostra como muitos “especialistas” sequer entendem como esse é um quadro complexo e como sua própria fisiologia torna o tratamento difícil e faz a condição ser recidivante. Há um desconhecimento também sobre o fato de que a melhora da saúde, da função e da qualidade de vida podem ocorrer mesmo quando a pessoa não emagrece ou não deixa de ter obesidade.
O discurso, quase sempre disfarçado de combate à doença, trata, na verdade, de combater as pessoas gordas. Nesse vídeo, por exemplo, teses do tipo “obesidade é questão de escolha” e “obesidade não pode ser aceita” são defendidas com uma mistura de argumentos científicos de botequim e frases que são só puro preconceito – como o diagnóstico de cardiopatia que é feito ali mesmo, por um profissional não médico, apenas com base no rosto supostamente inchado, inflamado e oleoso de um participante.
Questão de escolha?
Já imaginou dizer a uma pessoa com câncer que a culpa de estar doente é dela, e que o surgimento do tumor foi sua escolha, afinal, “quem mandou não se cuidar”? Soa absurdo, não? Agora, imagine se isso vier de um profissional da saúde, alguém que deveria justamente prestar cuidados a esse indivíduo. Não seria ainda mais bizarro? Pois é exatamente dessa forma que pessoas com obesidade são tratadas, inclusive por profissionais da saúde que se dizem especialistas em obesidade.
O pior é que, no caso da obesidade, parece normal e aceitável culpar os pacientes pela própria doença, e os que defendem tais ideias de forma mais vocal são efusivamente celebrados e aplaudidos.
Essa lógica perversa de jogar toda a responsabilidade pela obesidade e pelo seu tratamento no próprio paciente faz parte do estigma que aflige essa parcela da população, e revela como, nas entrelinhas e de forma velada, a gordofobia se manifesta. Por essa visão, a pessoa gorda é preguiçosa, desleixada, não se importa com sua saúde e só não deixa de ser gorda porque não quer.
Perceba que o sentido do termo “melhorar a saúde” é, nesse contexto, sinônimo de “deixar de ser gordo”. Nessa lógica, se uma pessoa é gorda, a única forma de ter saúde, qualidade de vida e, em última análise, ser feliz e aceita, é deixar de ser gorda. Mas, na verdade, são os preconceituosos que não aceitam a pessoa gorda enquanto ela for gorda.
Impactos da gordofobia
O estigma contra a obesidade é pernicioso, e tem um impacto enorme na autoestima e na saúde dessas pessoas. Ao serem desvalorizados e rejeitados pelos próprios profissionais de saúde, indivíduos com obesidade tendem a se afastar dos grupos e dos locais em que eles deveriam ser melhor acolhidos e bem recebidos, como as academias de ginástica.
O fato de quase não se ver gordos nesses locais não é fruto do acaso. Pelo contrário: a ausência de pessoas com obesidade nas academias é sistemática, e revela como tais ambientes são hostis a essas pessoas. Mas discursos gordofóbicos irão usar isso como evidência de que indivíduos gordos não se cuidam. Aqui, há uma triste realidade a ser constatada: meus colegas de formação têm contribuído muito para esse cenário.
Essa afirmação se baseia na postura estigmatizante que parte considerável dos profissionais do exercício adota ao falar sobre essa doença ou ao se dirigir a pessoas com obesidade. Isso nem sempre é fácil de perceber, pois muitos dos preconceitos permanecem velados, e se manifestam apenas nos detalhes de nossas condutas, passando despercebido aos olhos daqueles que não entendem as dificuldades por que passam as vítimas do preconceito.
As (reais) origens da obesidade – e por que é difícil vencê-la
Todo profissional que se preze deveria saber que a condição é multifatorial, mas tem uma forte base genética. Estimativas atuais indicam que a contribuição dos genes para a obesidade está entre 40% e 70% – e não estou me referindo à obesidade monogênica, essa sim mais rara. Acho que não preciso dizer que não escolhemos nossos genes, certo?
Pois os genes que contribuem para a obesidade estão majoritariamente ligados ao funcionamento do cérebro e ao controle da fome hedônica (vontade de comer alimentos por prazer). Pessoas com suscetibilidade à obesidade, portanto, tendem a comer mais, em especial alimentos hiperpalatáveis. Considerando a alta oferta de produtos desse tipo, e com alta densidade energética, não surpreende que indivíduos com essa tendência (que outrora se mantinham magros) tenham começado a engordar nas últimas décadas.
Isso, claro, não é uma questão de escolha, mas uma característica constitutiva dessa população. Para esse grupo, fazer dieta significa, muitas vezes, travar uma guerra perene contra seu próprio cérebro. Nela, algumas batalhas serão vencidas (quando consegue “seguir a dieta”), outras perdidas (quando “perde o controle”). Por isso, é tão normal alguém com obesidade conseguir emagrecer ao fazer dieta, mas ter uma recidiva e ganhar o peso de volta – ou até mais.
Quando perdemos peso, o metabolismo muda. A perda de tecido leva à redução do gasto energético, e passamos a queimar menos calorias. Há também uma perda adicional de gasto energético, proporcional à quantidade de peso perdido – fenômeno denominado adaptação metabólica. Mesmo gastando menos, a fome de quem emagreceu não reduz. Ao contrário, ela tende a aumentar. Perceba, portanto, a enorme dificuldade que é se manter magro: a fome aumenta e o gasto energético diminui. Se perder peso já é um esforço enorme para quem tem obesidade, manter-se magro para o resto da vida é ainda mais difícil.
Quando começamos a fazer exercício, há também uma redução do gasto energético de repouso, e não um aumento – como muitos, equivocadamente, afirmam. O gasto energético durante o exercício, além de pequeno, é em parte compensado pela redução do gasto de repouso, e isso ajuda a explicar porque o exercício, sozinho, não costuma levar a perdas de peso muito significativas, embora treinar seja essencial para manter o peso perdido em longo prazo.
Por fim, lembro que, diferente do que apregoa a lógica gordofófica, o tratamento da obesidade deve primar pela melhora da saúde do paciente, e não pelo retorno às faixas de “peso normal”. Com perdas discretas de peso (entre 5-10% do peso inicial) as pessoas continuam classificadas com obesidade, mas já experimentam melhoras importantes da saúde cardiometabólica, da capacidade funcional e da qualidade de vida.
Mas, claro, para os gordofóbicos, isso não é suficiente. Eles só se irão se satisfazer com o “fim” das pessoas gordas: seja emagrecendo-as até que se adequem ao padrão magro-e-musculoso, seja rejeitando-as, como já fazem. Em tempos em que reinam os maus influenciadores, bom mesmo é não ser influenciável.
Fonte: Estadão – acesse aqui