O que é preciso para se tornar um cientista-médico? – por Carmino de Souza

Carmino Antônio De Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020

O que diz a mídia

Vou reproduzir uma parte deste interessante artigo publicado no mês de março de 2025 na revista médica PLOS Global Public Health por Beatriz Barreto Duarte e colaboradores, em parceria da Fiocruz e a Universidade de Washington nos EUA, sobre um tema que tem muito sentido com minha vida de médico e de pesquisador. Por absoluta limitação de espaço desta coluna, vou reproduzir uma pequena parte do texto, infelizmente, retirando alguns comentários importantes dentro do tema. Assim, sugiro que seja completamente lido por quem tiver interesse.

Médicos-cientistas, com dupla formação médica e em pesquisa avançada, são um recurso humano escasso e valioso. Eles unem a prática clínica à pesquisa, abordam desafios médicos críticos com uma perspectiva científica e impulsionam a inovação ao traduzir descobertas em cuidados ao paciente.

Médicos com experiência em pesquisa são particularmente hábeis em avaliar criticamente a literatura científica para aprimorar sua prática e garantir que ofereçam cuidados atualizados, individualizados e baseados em evidências aos seus pacientes. No entanto, o caminho para se tornar um médico-cientista em Países de Baixa e Média Renda (PBMRs), como o Brasil (grifo nosso), é repleto de desafios. Neste artigo, os autores exploram as dificuldades enfrentadas por médicos-cientistas em PBMRs, incluindo treinamento longo e árduo, sistemas que privilegiam a medicina baseada em “eminência” (aspas nossas) em detrimento da medicina baseada em evidências e desincentivos financeiros para seguir uma carreira dupla em medicina e pesquisa. Os autores defendem reformas na educação médica para criar um ambiente mais favorável a aspirantes a médicos-cientistas.

Abordar essas questões pode ajudar os países de baixa e média renda a aprimorar a contribuição dos médicos-cientistas para a saúde global e o avanço científico. No primeiro dia de faculdade de medicina, os professores costumam perguntar: “Por que você escolheu estudar medicina?”. Muitos estudantes, com olhares de desaprovação, afirmam que veem isso como sua “vocação”, enquanto outros citam aspirações altruístas. Em muitas culturas, os médicos são altamente estimados em suas comunidades, o que motiva ainda mais os futuros graduados.

Estudantes de medicina, particularmente em PBMR, raramente consideram seguir a carreira de médicos-cientistas, apesar da diversidade e dos desafios únicos nessas regiões. Isso elucida por que os sistemas de saúde em PBMR lutam com práticas ultrapassadas devido à capacidade insuficiente de pesquisa, como visto na disponibilidade limitada de tratamentos inovadores, por exemplo, para doenças endêmicas.

Além disso, a maioria dos currículos médicos em PBMR não inspira nem apoia os estudantes de medicina na busca por uma carreira de médico-cientista. Isso representa uma oportunidade perdida crucial, já que os PBMR frequentemente enfrentam altos índices de doenças transmissíveis e não transmissíveis. Os formuladores de políticas do setor da saúde e a comunidade médica nesses países teriam dificuldade em encontrar um quadro de profissionais melhor para lidar com esses problemas do que os médicos-cientistas. Sua dupla competência lhes permite priorizar questões de pesquisa clinicamente relevantes com base em realidades observadas da saúde e das doenças humanas, o que pode levar a um impacto maior.

No entanto, treinar, apoiar e reter esses indivíduos altamente qualificados, que fazem a ponte entre a medicina clínica e a ciência básica, exige investimentos significativos. Um médico-cientista é um médico que concluiu treinamento formal em pesquisa (doutorado ou equivalente) além de sua educação médica convencional e dedica parte de sua carreira a atividades científicas. Em países de baixa e média renda, médicos proficientes em ciências básicas são raros. Médicos-cientistas nesses países são normalmente afiliados às faculdades de ciências da saúde de universidades, onde equilibram responsabilidades clínicas, acadêmicas e de ensino enquanto conduzem pesquisas.

É quase inédito que um médico-cientista seja capaz de se dedicar inteiramente à pesquisa científica. O caminho esperado para graduados em medicina normalmente envolve a transição para a residência médica, uma fase que exige horas extenuantes e prioriza a especialização em comparação à compreensão mais ampla de pesquisa ou de questões sistêmicas de saúde. Esse foco singular em tarefas clínicas deixa pouco espaço para a integração de metodologias de pesquisa ou para a aplicação de práticas baseadas em evidências.

Os TCCs (trabalhos de conclusão de curso) tentam reduzir este abismo entre a clínica e a pesquisa. Além disso, a dependência da aprendizagem observacional, em vez do ensino estruturado de princípios científicos, contribui para lacunas significativas no conhecimento. Este ambiente revela um paradoxo: embora os estudantes sejam treinados para melhorar a saúde dos pacientes através de avanços científicos e competências clínicas, muitas vezes descobrem-se incapazes de aplicar esse conhecimento na prática. A falta de recursos, as restrições financeiras dos pacientes ou a indisponibilidade de terapias adequadas prejudicam frequentemente os seus esforços, criando frustração e reforçando um sentimento de inadequação.

A transição da prática clínica para a investigação a tempo integral resulta frequentemente em rendimentos mais baixos e, após o doutoramento, normalmente não há aumento salarial, a menos que conduza a uma cátedra ou a uma progressão na carreira acadêmica. Estes fatores, juntamente com melhores oportunidades de financiamento da investigação e de desenvolvimento de carreira em países de maior grau de desenvolvimento, levam frequentemente os médicos-cientistas a abandonar os países de origem para os países de alta renda – um fenômeno conhecido como “fuga de cérebros”.

A busca e a manutenção de uma carreira como médico-cientista são significativamente dificultadas por barreiras estruturais, éticas e logísticas que obstruem os caminhos de carreira individuais e limitam avanços científicos e de saúde pública mais amplos. Esses desafios estão interligados a limitações socioeconômicas e de infraestrutura mais profundas, que criam um ambiente árduo para profissionais médicos que buscam se envolver em pesquisa clínica e/ou translacional.

Os sistemas éticos e regulatórios também apresentam obstáculos significativos para os médicos-cientistas. Embora a supervisão ética seja crucial para manter a integridade da pesquisa, os processos de revisão ética em muitos países são aplicados de forma inconsistente, criando longos tempos de aprovação e obstáculos administrativos. Isso é especialmente problemático para jovens pesquisadores que precisam de aprovações de projetos em tempo hábil para avançar em suas carreiras e contribuir significativamente para a pesquisa em saúde. A falta de um processo simplificado e eficiente pode atrasar projetos de pesquisa indefinidamente, muitas vezes desencorajando cientistas em início de carreira de realizar pesquisas independentes.

Apesar dos obstáculos, o caminho para se tornar um médico-cientista é possível com planejamento estratégico e aproveitamento dos recursos disponíveis. Uma das etapas mais importantes é identificar potenciais mentores e oportunidades de networking. Conferências e eventos acadêmicos oferecem uma excelente plataforma para conhecer profissionais experientes e construir conexões. Mudanças culturais são igualmente vitais para fomentar um ambiente voltado para a pesquisa. Universidades e instituições de saúde devem priorizar a pesquisa, incentivar o engajamento do corpo docente e promover a colaboração interdisciplinar.

Médicos-cientistas devem ser reconhecidos como colaboradores essenciais para a inovação em saúde, estreitando a lacuna entre a prática clínica e a investigação científica. Parcerias internacionais podem fortalecer ainda mais a capacidade local e alinhar as prioridades de pesquisa às necessidades regionais.

Reformas na educação e na infraestrutura, aliadas a mudanças culturais e sistêmicas, podem posicionar os países para construir um pipeline sustentável de médicos-cientistas. Esses esforços exigem a colaboração entre governos, universidades, instituições de saúde e organizações internacionais.

Ao promover a inovação e priorizar práticas baseadas em evidências, os países podem equipar uma nova geração de médicos-cientistas para impulsionar avanços na saúde e contribuir significativamente para a saúde global.

Fonte: Portal Hora Campinas – acesse aqui