Membro do Conselho Federal de Medicina (CFM) por São Paulo, o infectologista Francisco Cardoso retirou do ar o curso “Jornada de Segurança da Imunização” após reportagem do Estadão Verifica mostrar como médicos antivacina lucram com conteúdos, cursos, consultas particulares e tratamentos para remediar uma suposta síndrome da qual não existe comprovação científica. Em reação à reportagem, o Ministério da Saúde informou, no domingo, 16, que estuda um pacote de medidas contra os profissionais, inclusive com representação criminal na Justiça.
Como mostrou o Verifica, Francisco Cardoso, Roberto Zeballos e Paulo Porto de Melo publicaram um estudo com um protocolo para tratar o que chamam de “síndrome pós-spike” ou “spikeopatia” – uma suposta condição que seria causada pela proteína spike, produzida no corpo pelas vacinas de mRNA, e que teria sintomas semelhantes à covid longa. A comunidade científica não reconhece a existência dessa síndrome. O estudo foi retirado de publicação pela editora Elsevier devido ao risco da disseminação de protocolos de tratamento não validados e por não haver comprovação de relação entre a suposta doença e vacinas.
Em resposta à reportagem, Cardoso disse que o curso não saiu do ar: apenas teve uma atualização de conteúdo postergada “para não permitir que uma onda de desinformação contamine um conteúdo sério, técnico e ético”. O médico disse que jamais ofereceu curso antivacina.
“A discordância pontual sobre a indicação de um imunizante — algo inerente ao exercício técnico da medicina e previsto na própria autonomia profissional — não caracteriza, em hipótese alguma, postura ‘antivacina’”, escreveu o médico.
A Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai) manifestou “repúdio à disseminação de informações infundadas por profissionais de saúde que, contrariando o conhecimento científico estabelecido, associam vacinas mRNA a uma suposta ‘síndrome pós-spike’ ou ‘spikeopatia’ sem qualquer comprovação científica”.
Antes da publicação da reportagem, estava no ar o site do curso vendido por Cardoso nas redes sociais, no qual ele revelaria a “verdade” sobre os imunizantes, por R$ 497 à vista. “Seus filhos ou alguém da sua família serão picados e terão efeitos colaterais severos para o resto da vida”, alertava o médico, ao promover o curso em que indicaria quais vacinas seriam seguras ou não.
Francisco Cardoso também apagou diversas postagens no Instagram em que comercializava o curso. Uma delas (abaixo) foi reproduzida na reportagem do Verifica. Nela, constava a seguinte a frase: “Seu filho pode estar correndo riscos devido às v4c1nas”. A estratégia de utilizar números para disfarçar a grafia de palavras também é comum entre grupos antivacina para driblar mecanismos de moderação das redes sociais.
A postagem foi retirada do ar, assim como o site do curso, cujo link não consta mais na descrição do perfil de Cardoso. No espaço, consta um link para outro site do médico em que não há menção ao curso ou aos termos “síndrome pós-spike” e “spikeopatia”.
Nesse segundo site, o médico apenas promove tratamento para síndrome pós-covid, também chamada de covid longa – esta sim uma condição reconhecida pela comunidade científica e que pode acometer pessoas infectadas pelo vírus da covid, mas que não tem relação com a vacina. Pelo contrário, os dados mostram que a vacinação protege contra a covid longa, como mostrou a reportagem.
Médico tergiversa ao se pronunciar sobre reportagem do ‘Verifica’
Em resposta à reportagem do Verifica, Cardoso publicou um pronunciamento em seu perfil no Instagram. No vídeo, de forma enganosa, ele fala apenas sobre síndrome pós-covid (covid longa), que não foi o tema da reportagem. E silencia sobre a suposta condição de “síndrome pós-spike” ou “spikeopatia”, que explorou ao lado de Zeballos e Paulo Porto no estudo que foi retirado de publicação, como mostrou o Verifica.
No estudo, eles propunham substituir o termo covid longa por “síndrome pós-spike”, para abranger a vacina como causadora dos sintomas, e não apenas o vírus da covid. Pesquisadores, cientistas e autoridades de saúde no Brasil e no exterior disseram ao Verifica que não existe comprovação científica de que a spike induzida pelas vacinas possa provocar os efeitos semelhantes aos da covid longa, como fadiga, névoa mental, dores nas juntas e diarreia.
O neurologista Paulo Porto de Melo também retirou do ar o curso “Medicina sem Censura” após a publicação da reportagem do Estadão Verifica. Com valor de R$ 685 à vista, o curso prometia revelar a “verdade” que estaria sendo ocultada pela indústria farmacêutica e pela mídia. O link foi retirado de seu perfil no Instagram.
A descrição do curso falava em “uma comunidade oculta para revelar todas as verdades que eles não querem que você saiba” e em “análises e conteúdos que não podem ser postados nas redes sociais”. Um dos módulos era intitulado “reunião secreta – arquivos sigilosos da vacinação”.
Paulo Porto também apagou uma postagem reproduzida na reportagem do Verifica. Nela, ele aconselhava um seguidor a fazer um check-up após ter se vacinado contra a covid para saber se teria a proteína spike no corpo.
O Conselho Federal de Medicina e o Conselho Regional de Medicina de São Paulo foram procurados pelo Estadão Verifica, mas não se pronunciaram sobre as atividades dos médicos.
O Código de Ética Médica define, no artigo 113, que não é permitido que seja “divulgado, fora do meio científico, processo de tratamento ou descoberta cujo valor científico ainda não esteja expressamente reconhecido cientificamente por órgão competente”. Também é proibido que informação sobre assunto médico seja divulgada de forma “sensacionalista ou promocional”.
No domingo, 16, após publicação da reportagem na edição impressa do Estadão, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, fez uma postagem na rede social X sobre o assunto. Ele afirmou que o governo não seria tolerante com o negacionismo e que o órgão, junto com a Advocacia-Geral da União (AGU), adotaria “medidas cabíveis” contra a difusão do que os médicos chamam de “síndrome pós-spike” ou “spikeopatia”, em relação a vacina de RNA mensageiro (mRNA).
Em entrevista ao Estadão, Padilha afirmou que o ministério prepara medidas em quatro frentes contra os médicos envolvidos. A primeira consiste em uma representação ao Conselho Regional de Medicina em conjunto com a AGU, enquanto a segunda prevê uma ação civil pública porque “esses profissionais afrontam o direito à saúde por propagar desinformação”, disse. A terceira medida envolve ações criminais relacionadas à comercialização de tratamentos falsos. Por fim, o ministro destacou que a AGU analisa uma notificação extrajudicial de plataformas digitais para a retirada imediata de conteúdos que vendem cursos, materiais e informações mentirosas sobre vacinas e saúde.
Fonte: Estadão – acesse aqui