A mulher que ressignificou o tratamento do câncer infantil

Nesta edição, apresentamos o perfil de Silvia Brandalise, médica e fundadora do Centro Infantil Boldrini, referência no tratamento de câncer em crianças

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Dando continuidade à série da Revista da APM que relembra a trajetória de notáveis mulheres que contribuíram para a consolidação da Medicina nacional, Silvia Brandalise compartilhou que seu amor pela Medicina começou na adolescência, quando ouviu pela primeira vez sobre Albert Schweitzer, médico e filósofo europeu que realizou ações sociais na África para arrecadar fundos para a construção de um hospital em Lambaréné, na África Equatorial.

“Eu me lembro de ter ficado muito emocionada lendo o artigo [sobre Schweitzer], eu tinha 16 anos. Depois de ler o texto, escrevi uma carta para ele, expressando minha admiração e afeto pelo que ele representava para o mundo. E não tinha endereço, eu só sabia que era no Gabão, na África. Mesmo assim, a enfermeira que trabalhava com ele respondeu agradecendo e dizendo que ele não pôde responder porque estava na Europa”, recorda.

Silvia entrou na Escola Paulista de Medicina, atualmente da Universidade Federal de São Paulo, e se formou como médica em 1967. Ela também fez Residência Médica em Pediatria durante os anos de 1967 a 1969 na mesma instituição – especialidade que exerceria pelos próximos dez anos.

Depois de terminar a Residência, mudou-se para Campinas, onde passou a liderar a enfermaria da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Segundo ela, os únicos quadros que não tratava eram os de pacientes com câncer, pois eram automaticamente encaminhados para “médicos de adultos e ninguém da pediatria tinha contato com os casos”.

“Eu me lembro que a mãe de uma criança com leucemia pediu para que eu indicasse um médico fora do hospital da Unicamp. Eu recomendei alguns especialistas de São Paulo, Argentina e Estados Unidos”, conta. No entanto, a mãe pediu que ela os acompanhasse até os Estados Unidos para o tratamento. A princípio, a médica resistiu, mas a insistência da mãe e o choro da criança a convenceram.

Ela foi ao país norte-americano para que o paciente fosse consultado por Rhomes Amin Aur, que havia sido professor de Silvia na EPM. Ela apresentou o caso, mas foi informada de que não havia mais cura. Ao
retornar ao Brasil, a médica permaneceu ao lado do paciente oncológico até a morte.

Pouco tempo depois, outro paciente de cinco anos, com leucemia, a impactou profundamente. Na enfermaria do hospital, o menino, aos prantos, puxou o uniforme de Silvia e a implorou para que a atendesse, após uma série de erros médicos que atrasaram o diagnóstico e tratamento da criança.

A vida da médica mudou completamente. Ela decidiu abandonar o cargo de chefe de enfermaria de pediatria e passou a se dedicar ao câncer infantil. Foi nesse período que pediu para que Aur viesse ao Brasil ensinar o que sabia sobre doenças cancerígenas. “Eu pedi para que ele ficasse um mês me ensinando tudo que soubesse, e ele veio”.

Centro Infantil Boldrini
Em 1978, um grupo de mulheres de Campinas, chamado Clube da Lady, doou um espaço para atender os pacientes com câncer. Com a ajuda de profissionais da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Silvia Brandalise criou uma entidade jurídica e deu o nome de Boldrini.

A princípio, foi montado um ambulatório. Silvia lembra que houve um momento em que surgiu a necessidade de ter um lugar para internar os pacientes atendidos. “Eu ia aos hospitais privados de Campinas pedir para emprestarem leitos para colocar os doentes até conseguir vaga no hospital público. Levei muitas crianças para a minha casa porque não tinha onde internar”.

Em 1986, a partir de uma doação do Instituto Robert Bosch, foi possível construir um hospital em um terreno de 1.500 metros quadrados. Com a ajuda de outras instituições e empresas, hoje o espaço tem 40 mil metros quadrados de área construída e por volta de 80 leitos de internação. Aproximadamente 80% dos pacientes são do Sistema Único de Saúde (SUS) e 20% fazem parte da saúde suplementar.

O Boldrini oferece alta tecnologia em diagnóstico e uma infraestrutura completa de atendimento. Diversas linhas de pesquisa estão presentes na estrutura da organização, incentivando novas descobertas na Oncologia e na Hematologia Pediátrica. Silvia destaca que a expectativa de sobrevida dos pacientes é de 84%, mas o objetivo é chegar a 100%.

O hospital já foi declarado de utilidade pública estadual e federal, oferecendo serviços de Radioterapia; Medicina Nuclear e Imagem; centro de reabilitação; unidade de terapia intensiva (UTI); unidade de transplante de medula óssea, entre outros. Além disso, conta também com o Instituto de Pediatria, o Instituto de Engenharia Celular e Molecular e a Central de Captação de Recursos.

Silvia também menciona o Programa de Educação em Oncologia Pediátrica (PEOp) oferecido pelo Centro Infantil, que dá aos estudantes de Medicina, Ciências Biomédicas, Enfermagem, Farmácia, Psicologia e Saúde Pública a oportunidade de se prepararem profissionalmente e adquirirem experiência em pesquisa e tratamento do câncer.

“Os alunos ficam conosco de quatro a seis semanas, durante as férias, de dezembro e janeiro, fazendo a prática clínica pessoalmente, aprendendo a pensar no câncer, no aspecto do genoma, no aspecto da histologia, nos exames de imagem e na epidemiologia. Para participar, os alunos de graduação devem prestar exames seletivos. Se quiserem, podem começar uma iniciação científica”, explica. O programa tem sido um sucesso, conforme destaca a fundadora.

Outro ponto em que o hospital se destaca é no estudo científico. O Centro de Pesquisa Boldrini (CPB) é o primeiro do Brasil dedicado exclusivamente à pesquisa sobre câncer pediátrico, conectando cientistas, médicos e universidades para impulsionar os estudos de novos tratamentos.

O CPB possui nove grupos de estudos, que abrangem os principais e mais avançados campos da pesquisa científica, como imunoterapia; anticorpos monoclonais terapêuticos; DNA circulante tumoral; tumores do sistema nervoso central; doença residual mínima; fatores ambientais e câncer pediátrico; informática; e espectrometria de massa.

Solidariedade
Para Silvia Brandalise, um dos pilares do Boldrini, desde a sua criação, é a solidariedade e o senso de coletividade. A médica diz que aprendeu a conviver com a pobreza e a calamidade presentes nas unidades públicas. “Na Santa Casa, onde a Medicina funcionava, era tão pobre que não tinha dinheiro para comprar seringa, faltava muita coisa nos quartos, foi possível aprendermos a pedir”, relata.

“Eu tive uma oportunidade única de conviver com a pobreza, aprendi a entender como é o coração das pessoas generosas. Também foi possível aprender que não se pode oferecer um bom atendimento se não houver voluntários, pessoas que dedicam suas horas para dar um sorriso para as crianças, tocar piano, brincar. Pude ver que a generosidade transforma uma realidade cruel”, reflete a homenageada.

Ela salienta que, além da ajuda de voluntários, só é possível cuidar das crianças, adolescentes e adultos jovens portadores de doenças sanguíneas ou de câncer por meio de doações, sendo que a maioria delas são feitas pela população de Campinas.

Portanto, a missão da organização reflete um dos objetivos de vida de Silvia: oferecer atendimento médico e multiprofissional, independentemente do nível socioeconômico, raça ou credo, bem como, desenvolver atividades de ensino e pesquisa.

A presidente do Boldrini declara que desde o início da carreira médica vem aprendendo sobre a importância de sair de si mesma para entrar no coletivo. O trecho de um discurso feito por ela em 1998, em uma formatura, retrata o senso de coletividade da médica: “No vislumbre deste novo caminho, carregue sempre o seu céu. Céu sem limites, de brilho irradiante. Renovando a cada dia a alegria de viver; o viver com compromisso; o outro no eu; o eu no nós; o nós no eles; e o eles em nós.”

Foto: Isabela Martini/StudioImagem e Divulgação Instituto Boldrini