Responder mensagens no celular enquanto uma série passa na TV é comum, mas cobra caro do cérebro. Esse multitasking digital, em que realizamos várias tarefas ao mesmo tempo, compromete a memória e a atenção. Entre jovens da geração Z, com idades entre 15 e 28 anos, o comportamento frequentemente está acompanhado de fatores como sono ruim e obesidade, o que pode acelerar o envelhecimento cerebral.
“Esse estilo de vida corrido, em que se faz várias coisas ao mesmo tempo, costuma vir junto de outros hábitos ruins que influenciam no envelhecimento do cérebro”, afirma Clariana Nascimento, neurologista especialista em cognição. “Fazer duas tarefas ao mesmo tempo interfere na atenção e no foco, diminui a capacidade de processamento e armazenamento de informações e causa fadiga mental.”
“A atenção é o primeiro passo para a memória. Sem atenção, não há memória.” João Brainer – Professor de Neurologia e Informática em Saúde da Universidade Federal de São Paulo.
O cérebro não foi programado para executar múltiplas tarefas simultaneamente. Atividades em paralelo sobrecarregam áreas como o córtex frontal, responsável pela cognição e pelo controle motor, aponta Peter Wilson, psicólogo da Universidade Católica da Austrália, em artigo no portal Science Alert. O desvio constante de atenção também prejudica o sistema glinfático, responsável por eliminar resíduos tóxicos do sistema nervoso central.
“Com isso, o cérebro não realiza a limpeza corretamente”, explica João Brainer, professor de Neurologia e Informática em Saúde da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Nos conteúdos digitais, vídeos curtos e desconexos dividem a atenção e dificultam a formação de associações lógicas.
Interrupção como padrão
Um estudo de 2023 investigou como alternar entre redes sociais e outra atividade afeta a memória prospectiva, responsável por lembrar de tarefas diárias. No experimento, jovens de 19 a 34 anos realizaram no computador um teste que exigia reconhecer e organizar palavras rapidamente. Durante o intervalo, cada grupo descansou por dez minutos ou usou redes sociais (Twitter, YouTube ou TikTok) antes de retomar as tarefas iniciais.
Quem assistiu a vídeos no TikTok teve pior desempenho na relação entre velocidade e precisão. Segundo os pesquisadores, mesmo cientes de que precisavam voltar para o teste, permaneciam cognitivamente engajados com a interrupção. O fluxo contínuo de vídeos curtos ocupa a “memória tampão” (espaço temporário de armazenamento de informações) e reduz recursos para outras tarefas.
A preocupação é maior entre os mais jovens da geração Z, cujo córtex pré-frontal, responsável pelo controle de impulsos, ainda se desenvolve. “Parte dessas pessoas faz o que chamamos de desidealização, que é a sensação de não estar no mundo concreto e se comportar como se vivessem constantemente no virtual”, diz Brainer.
O neurologista alerta ainda para o impacto no campo psicológico: “As emoções transmitidas pela tela são dissociadas de algo concreto, levando a pessoa a se projetar na vida do outro, o que pode gerar angústia, comparação e medo.”
Menos horas de sono
O cérebro hiperestimulado tampouco encontra descanso. Um estudo brasileiro de 2024 mostrou que, nas últimas cinco décadas, o tempo médio de sono caiu cerca de duas horas e a parcela de pessoas que dormem menos de seis horas cresceu 6%. A recomendação é de, em média, oito horas por noite.
“Se eu não durmo bem, a informação chega quebrada, mal armazenada. É aquela sensação do dia de prova, quando o aluno diz: ‘Eu sei que sei, mas não lembro’. Ele se recorda da professora, da página do livro, mas não do conteúdo.” Monica Andersen – Especialista em Medicina do Sono, diretora do Instituto do Sono/AFIP e uma das autoras do estudo.
O sono é essencial para aquisição, armazenamento e evocação da memória. A consolidação está ligada principalmente ao sono REM, caracterizado por movimento rápido dos olhos, atividade cerebral similar à vigília e aumento de respiração e frequência cardíaca. Pesquisas recentes também destacam a importância do sono não-REM (NREM), que inclui o sono leve e profundo.
Cérebro envelhecido
Uma noite mal dormida também “envelhece o cérebro”, afirma Monica, ao explicar que o estresse oxidativo produz substâncias que funcionam como “ferrugem” para o corpo e para o sistema nervoso. Um estudo da Universidade da Califórnia, publicado na revista Neurology, mostrou que pessoas na faixa dos 40 anos com distúrbios do sono, como dificuldade para adormecer ou despertares frequentes, apresentaram idade cerebral entre 1,6 e 2,6 anos mais avançada.
Segundo a especialista em Medicina do Sono, a má qualidade do sono está ligada a fatores socioeconômicos, como o uso intenso de celulares e ambiente online, que promovem atividade interativa e viciante. “Na hora da interação, brotam no cérebro receptores de expectativa, os dopaminérgicos. Quando você faz qualquer pergunta à internet, intuitivamente busca uma resposta imediata. A internet é gratificação”.
Pesquisadores já associavam a obesidade na meia-idade ao risco de declínio cognitivo. Um estudo da Universidade de São Paulo (USP) mostrou que o ganho de peso constante desde a infância pode acelerar o envelhecimento do cérebro em até 6,5 anos. Publicada em abril no periódico Neurology, a pesquisa sugere que controlar o peso desde jovem pode reduzir o declínio cognitivo mais tarde.
“As principais hipóteses ligam obesidade e declínio cognitivo à saúde metabólica e vascular, ou seja, um efeito indireto.” Paulo Henrique Lazzaris Coelho – Geriatra autor da tese de doutorado que originou a pesquisa.
A obesidade aumenta o risco de diabetes, hipertensão e colesterol alto, que provocam inflamação e afetam pequenos vasos cerebrais, prejudicando a chegada de nutrientes e acelerando a morte de neurônios. A pesquisa avaliou 11.361 servidores usando silhuetas para mapear o corpo em cinco idades.
Testes de memória, função executiva e linguagem mostraram que quem passou de “normal para sobrepeso” ou manteve “sobrepeso estável” teve declínio cognitivo mais acelerado, principalmente em memória e função executiva. “Outra análise da tese mostra que a obesidade abdominal é o fator mais ligado à piora metabólica e ao declínio cognitivo. Não é só o ganho de peso, mas onde ele ocorre”, conclui Coelho.
E dá para reverter?
Brainer, da Unifesp, explica que a diminuição de atenção, foco e memória pode ser temporária. “Reduzir multitasking, organizar-se melhor, meditar, dormir bem, praticar atividade física, alimentar-se saudavelmente e controlar fatores de risco desacelera o envelhecimento cerebral e reduz chances de problemas graves”, recomenda o neurologista.
De acordo com Monica, não se sabe quanto tempo de sono perdido causaria a fragmentação da memória tampouco quanto precisaria ser reposto para restaurá-la à capacidade inicial – nem se isso seria possível. Quanto à obesidade e sua relação com o declínio cognitivo, o geriatra Coelho lembra que a faixa mais velha da geração Z está chegando aos 30 anos, quando começam a perda muscular e a queda de desempenho. “Quanto antes se cuidarem, mais tempo terão para desacelerar esses processos e envelhecer com qualidade de vida.”
Fonte: Estadão – acesse aqui