O Ministério da Saúde produziu uma nota técnica após as revelações feitas pela reportagem do Estadão Verifica sobre a venda de cursos e terapias para uma suposta “síndrome pós-spike” sem comprovação científica. Um dos tratamentos oferecidos pelos médicos é o que eles chamam de “detox vacinal”, que traz riscos à saúde individual e coletiva, além de comprometer a credibilidade do programa de imunizações, afirma a pasta.
“Os profissionais que promovem práticas como o ‘detox vacinal’ frequentemente seguem protocolos próprios e sem embasamento científico sólido, o que complica a identificação e avaliação das substâncias utilizadas. A ausência de padronização dessas abordagens resulta em uma diversidade de métodos, elevando o risco de desinformação e a adoção de práticas prejudiciais à saúde pública”, diz o ministério.
Os métodos — que vão do uso de ventosa no local da injeção para “remover a vacina” ao uso profilático de medicamentos como ivermectina e hidroxicloroquina — “neutralizariam” supostos efeitos das vacinas, alegação que, novamente, carece totalmente de comprovação científica.
“Diversos estudos científicos de alta qualidade têm demonstrado a ineficácia desses medicamentos tanto na prevenção da doença quanto no combate aos supostos eventos adversos das vacinas covid-19. A Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Anvisa deixaram claro que não existem evidências robustas que sustentem o uso desses medicamentos para o tratamento ou prevenção dos efeitos negativos do SARS-CoV-2″, explica a pasta no documento usado pela Advocacia Geral da União (AGU) para solicitar à Meta que remova as publicações dos médicos.
A venda de “kits detox” pode configurar crime, segundo o ministério, e os vendedores podem sofrer sanções penais e éticas, já que a comercialização de produtos sem comprovação científica fere o Código de Ética Médica e expõe a saúde pública a risco.
As vacinas são desenvolvidas sob rigorosos critérios de segurança e eficácia, com mecanismos de ação bem estabelecidos que não envolvem intoxicação, lembra o Ministério da Saúde. “Os imunizantes contra a covid-19 têm demonstrado um excelente perfil de segurança, com eventos adversos graves ocorrendo de forma extremamente rara”, reforça.
A pasta diz ainda que a promoção dessas terapias é alimentada por desinformação, desconfiança nas autoridades de saúde e pseudociência, desviando o foco de intervenções comprovadamente seguras e eficazes, como as vacinas.
O governo também critica as estratégias de monetização dos profissionais. A criação de diagnósticos alternativos — como a “síndrome pós-spike” — e publicações de conteúdo alarmista são utilizadas como base para a venda de cursos, livros e pacotes terapêuticos, “sugerindo conflito de interesse e exploração comercial da desinformação”, diz o ministério. Um dos cursos foi retirado do ar após a reportagem do Estadão Verifica.
Além do ministério, a Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai) manifestou “repúdio à disseminação de informações infundadas por profissionais de saúde que, contrariando o conhecimento científico estabelecido, associam vacinas à suposta síndrome e cobrou que o Conselho Federal de Medicina apure o caso com rigor.
Entenda o caso
A proteína spike está presente na superfície do vírus SARS-CoV-2, responsável pela covid-19. As vacinas de RNA mensageiro (mRNA) desenvolvidas para combater o vírus promovem a produção da proteína para gerar a resposta imunológica no organismo. É uma maneira de “ensinar” o sistema imunológico a identificar uma parte do vírus e se preparar para combatê-lo.
Mas alguns médicos sugerem que a proteína spike induzida pelas vacinas de mRNA teria efeitos nocivos. Conforme mostrou o Estadão Verifica, esses profissionais, que somam mais de 1,6 milhão de seguidores nas redes sociais, afirmam ter descoberto uma intoxicação por vacinas de mRNA com sintomas a longo prazo e vendem cursos e terapias não comprovadas para combater a suposta “spikeopatia”, que também carece de embasamento científico.
A hipótese foi defendida pelo imunologista Roberto Zeballos, o infectologista Francisco Cardoso e o neurologista Paulo Porto de Melo em um estudo publicado na revista IDCases em junho deste ano. O trabalho foi contestado e despublicado — o que acontece quando há falhas graves ou evidências de má conduta.
Os três médicos foram procurados pela reportagem do Estadão Verifica, mas somente Cardoso e Zeballos responderam.
Cardoso disse que o estudo publicado na IDCases é um relato de caso, e que esse tipo publicação não tem a função de comprovar causalidade, validar protocolos, nem demonstrar eficácia terapêutica. O infectologista atribuiu a retratação do estudo ao que chamou de “crescente politização da ciência”. Segundo ele, “o problema não é o artigo — é o tema que ele aborda”.
Zeballos disse que o propósito do estudo não era estabelecer um protocolo oficial, mas inspirar colegas a fazer ensaios clínicos para comprovar a eficácia do tratamento.
O que faz a proteína spike no corpo?
Diferentemente do que acontece na infecção natural, quando há uma produção massiva de proteínas virais em muitos locais do corpo, a produção gerada com a vacinação é localizada. A ação acontece principalmente no músculo em que o imunizante foi injetado e em células imunológicas próximas, em quantidade bem menor e por tempo limitado.
O objetivo da vacinação é apresentar o antígeno ao sistema imunológico, não causar infecção sistêmica. A administração da proteína spike ou do RNA que leva à produção dela no organismo é muito mais segura do que a infecção natural e gera respostas imunológicas de memória muito melhores, segundo os especialistas.
O imunologista Jorge Kalil, ex-presidente do Instituto Butantan, cita como exemplo um consenso científico publicado recentemente pela Sociedade Europeia de Cardiologia, que concluiu que a incidência de miocardite (inflamação no músculo cardíaco) e pericardite (inflamação na membrana que envolve o coração) causada pela covid-19 é de cinco a dez vezes superior à dos casos provenientes das vacinas, e também mais grave e com complicações a longo prazo, incluindo morte.
Fonte: Estadão – acesse aqui