A escolha pela Medicina na vida de Nelci Zanon Collange não foi uma decisão imediata. Presidente da Associação Brasileira de Mulheres Médicas (ABMM) e uma das mais renomadas e respeitadas neurocirurgiãs pediátricas do Brasil e do mundo, a especialista revela que a semente dessa trajetória foi plantada quando ela tinha apenas 15 anos.
Na época, trabalhava em um hospital em Antônio Prado, no Rio Grande do Sul, e foi questionada pela mãe de um paciente sobre o que gostaria de fazer quando crescesse. Esse simples questionamento despertou nela a vocação para a Medicina – caminho que, com o tempo, a transformou em uma referência internacional na sua área de atuação.
Em 1986, Nelci se formou em Medicina pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), fez residência médica em Neurocirurgia no Hospital do Servidores do Estado do Rio de Janeiro, entre 1987 e 1991, e depois se especializou em Neurocirurgia Pediátrica, na França. Sua carreira tomou rumos impressionantes, superando qualquer expectativa inicial.
“Escolhi a Neurocirurgia logo nos primeiros anos da Faculdade de Medicina, porque estava sempre em busca de desafios. Pensava ‘o que é mais difícil e o que ninguém quer? E o que exige o máximo do aluno de Medicina?’ Eu tinha a opção de seguir para a Cirurgia Cardíaca e Neurocirurgia. Na Cardio até tentei gostar, mas a paixão pela Neuro foi mais forte. Então, foi uma escolha muito simples, muito prática e muito rápida”, conta.
Já o interesse na Neurocirurgia Pediátrica começou quando ela conheceu o professor Maurice Choux. “Para mim, assistir a palestra dele foi a coisa mais linda. Falei que quando eu crescesse, iria visitá-lo na França. A vida seguiu seu fluxo e, após a Neurocirurgia, fui para lá e realmente ele mudou todos os paradigmas que eu tinha na minha formação de Neurocirurgia. Então, a Neurocirurgia Pediátrica foi uma consequência natural”, destaca.
Influências e Trajetória
Nelci lembra com carinho dos desafios durante sua carreira. De acordo com ela, sempre que expressava o desejo de se tornar neurocirurgiã, ninguém a levava a sério. “Escutei algumas vezes que eu seria uma ‘instrumentadora de luxo’ e que ninguém, em sã consciência, permitiria uma mulher abrir a cabeça de outra pessoa. Passei a não falar mais nada e, quando era perguntada, respondia que ainda não tinha decidido. Assim, encurtava a discussão e não precisava explicar”, afirma.
Na residência, as coisas foram mais equilibradas e Nelci nunca sentiu uma diferença de gênero em seu trabalho. “Era braço a braço, tudo bem correto e dividido igualmente, sem diferença nem no trabalho e nem no salário.” No entanto, ao retornar da França, ela encontrou algumas dificuldades ao se estabelecer em São Paulo, o que considera normal para qualquer profissional em início de carreira.
Um episódio engraçado marcou este período – uma recepcionista, ao vê-la como chefe júnior em um hospital privado, perguntou qual seria a equipe que ela iria “instrumentar”. Quando a médica revelou que era a neurocirurgiã responsável, a recepcionista perguntou quem seria seu chefe. “Eu respondi que a chefe era eu mesma. São coisas que acredito que fazem parte de evolução e da cultura local, não foram necessariamente dificuldades vencidas, porque encarava isso com naturalidade e até uma certa brincadeira. Isso me divertia e não constrangia”, acrescenta.
A médica atribui sua formação a três grandes mestres da Neurocirurgia: Paulo Ricardo Mattana, seu professor na Universidade de Caxias do Sul. “A maneira como ele tratava os doentes, dava aula e a paixão que tinha pela Cirurgia. Ele também deixava a gente entrar no centro cirúrgico e se vestir para assistir a cirurgia. Naquela época, era o máximo que o aluno do terceiro ou quarto ano da faculdade de Medicina poderia conseguir.”; José Carlos Lynch, chefe da Neurocirurgia do Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro e preceptor da residência, é outro grande exemplo para ela. “Ele me ensinou sistematizar os passos de cada cirurgia, ter rotinas, disciplina e protocolos, entre outros. Acredito que foi muito importante na minha formação profissional. Quando cheguei na França, percebi o quanto eu sabia sobre Neurocirurgia, talvez não soubesse tanto do idioma francês, mas a Neurocirurgia abriu portas em outros países.”; e Maurice Choux, com quem a mudança foi ainda melhor. “Ele ensinou que a criança é um mundo à parte e que a família toda deve ser acolhida, porque tudo que você fizer deve ser muito claro, explicado, verdadeiro e transparente. E, assim, as relação ficarão mais tranquilas”, complementa.
Evolução profissional
Ao longo dos anos, muita coisa evoluiu e Nelci lembra como a tomografia era precária naquela época. “Era necessário adivinhar algumas lesões que não eram tão evidentes como são hoje, por exemplo, com o aparelho de ressonância 3 Tesla. Arteriografia era usada para estudar os vasos, mas não tinha o neurorradiologista, então nós, residentes de Neurocirurgia, fazíamos os exames neurorradiológicos, tanto arteriografia quanto a mielografia. Hoje, esses exames são feitos pelos neurorradiologistas com a qualidade digital muito superior da qualidade de uma radiografia que a gente tinha na época.”
“Sempre tenho a chance de visitar muitos lugares e as conversas são muito parecidas, inclusive, existe locais que algumas mulheres se sentem preteridas, principalmente em casos de liderança. Algumas das desculpas estão ligadas ao fato de a mulher se mais focada no cuidado com a família e na maternidade. Acredito que estamos avançando como um todo e temos mulheres brilhantes na Neurocirurgia. Penso que a realidade de hoje será muito melhor do que foi a minha e ainda vai melhorar muito nas próximas gerações”, continua.
Os países, de modo geral, sofrem com a escassez de neurocirurgiões pediátricos. No Brasil, segundo Nelci, várias regiões ainda não têm Neurocirurgia Pediátrica e a população está cada vez mais consciente disso – algumas famílias vão para serviços generalistas e a internet acaba sendo usada como fonte de esclarecimento de todos.
“Existem países na África que não têm neurocirurgião, ainda mais neurocirurgião pediátrico. A Neurocirurgia Pediátrica não é uma área de atuação no Brasil, já estamos maduros o suficiente para que se torne especialidade. Precisamos de todo o apoio da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia, da Sociedade Brasileira de Pediatria, da APM, da Associação Médica Brasileira, do Conselho Federal de Medicina e de outras entidades que trabalham nisso”, pondera.
Mulheres na Neurocirurgia
Nelci Zanon vê com otimismo o aumento da presença feminina na Neurocirurgia e cita como exemplo o próximo congresso da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia, que será presidido por uma mulher, a neurocirurgiã Mariangela Gonçalves, do Rio de Janeiro. “Até agora, nenhuma mulher tinha organizado um congresso brasileiro e, por enquanto, nenhuma foi presidente da Sociedade. Estamos avançando a passos largos e as barreiras estão menores.”
A especialista complementa que precisamos de sabedora para discernir o que está relacionado a nós, o que precisamos melhorar e o que está relacionado à pessoa que está sendo interlocutora de alguma mensagem para nós. “É preciso continuar batalhando e projetando a vida. Jamais teria imaginado que eu voaria tão longe, por isso, semeie sementes boas em terrenos férteis e você nunca mais vai se preocupar com a colheita, porque ela será naturalmente abundante. Talvez não seja no nosso tempo de espera, mas virá no tempo correto, no tempo do merecimento e do plantio contínuo”, reforça.
Além de sua atuação clínica e acadêmica, Nelci Zanon Collange possui uma carreira sólida em entidades médicas. É vice-presidente para a América Latina da Sociedade Mundial das Mulheres Médicas (MWIA); membro da Academia de Medicina de São Paulo desde 2020 (AMSP); secretária da Sociedade Internacional de Neurocirurgia Pediátrica (ISPN); coordenadora do Departamento de Neurologia e Neurocirurgia na Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP); neurocirurgiã da Universidade Federal de São Paulo e coordenadora do Centro de Neurocirurgia Pediátrica (Cenepe).
Além disso, também foi presidente do Comitê de Neurocirurgia Pediátrica da Federação Mundial das Sociedades de Neurocirurgia (WFNS) e do Comitê de Educação da Sociedade Internacional de Neurocirurgia Pediátrica (ISPN); uma das responsáveis pela criação do setor de Neurocirurgia Pediátrica no Hospital Santa Marcelina; a primeira preceptora em Neurocirurgia da Unifesp e a primeira mulher a fazer mestrado e doutorado em Neurocirurgia. “Me sinto extremamente abençoada na carreira e na família”, conclui.
*Matéria publicada na Revista da APM – nº 748, edição Janeiro/Fevereiro de 2025