Nem toda amnésia é sinal de doença; conheça as diferentes formas e suas causas

Entenda como a amnésia pode variar de episódios agudos a crônicos e quando o esquecimento merece atenção especial

O que diz a mídia

Se você pensa que toda amnésia é igual, pode esquecer. Também não é o caso de achar que esteja sofrendo de amnésia só porque não sabe onde acabou de colocar a chave do carro. Amnésia envolve a incapacidade de lembrar eventos ou detalhes significativos da vida. E, dentro desse espectro, ela se manifesta de múltiplas maneiras.

As amnésias mais comuns são as agudas, de curta duração, que se estendem por, no máximo, 24 horas. A amnésia global transitória, também conhecida por AGT, é uma delas. “Trata-se de um episódio súbito de amnésia que tende a ser ao mesmo tempo anterógrada, pela incapacidade de formar novas memórias, e retrógrada, pela dificuldade de recuperar certos fatos do passado”, explica o neurologista Diogo Haddad, professor de neurologia da faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.

A AGT é uma síndrome benigna, que preserva a identidade pessoal, a função cognitiva, a linguagem e a atenção, mas cria essa lacuna repentina, que costuma durar de seis a oito horas. Uma manifestação característica do quadro é a pessoa ficar repetindo a mesma frase, já que não consegue aprender coisas novas.

No ano passado, o ator americano Liev Schreiber contou durante o Late Night with Seth Meyers, programa de variedades da NBC, que experimentou esse apagão um pouco antes de entrar no palco para viver um personagem teatral. “Eu sabia que estava em uma peça, mas não sabia em qual peça estava”, relatou. Ele já tinha sentido que algo estava errado um pouco antes, quando viu uma colega de elenco nos bastidores, mas não conseguiu se lembrar do nome dela. No palco, a situação complicou porque ele esqueceu completamente suas falas. “É o pior pesadelo que um ator pode ter”, afirmou.

O médico que atendeu Schreiber associou a amnésia a uma enxaqueca dilacerante que o acometeu naquele dia. De fato, a enxaqueca pode ser um gatilho para a AGT, assim como um exercício físico mais intenso, um estresse emocional ou mesmo uma relação sexual. E costuma ser um episódio único. Se for repetitivo, pede uma investigação mais detalhada para confirmar ou descartar uma isquemia, ou seja, uma interrupção do fluxo sanguíneo para o cérebro. Se ultrapassar 24 horas, também. Um exame de ressonância magnética do cérebro deve tirar qualquer dúvida nesse sentido.

Outra circunstância de amnésia aguda é a pós-traumática, que pode ser motivada por lesão cerebral traumática (uma concussão, por exemplo) ou por um trauma psicológico. “A memória é uma função muito nobre e delicada do cérebro”, lembra o geriatra e psiquiatra Ivan Aprahamian, diretor científico da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG). As células que cumprem essa função fazem parte de uma rede neural chamada circuito de Papez, que une estruturas como o hipocampo, fórnix, corpos mamilares, tálamo e giro do cíngulo para consolidar a memória e as emoções. Socos, quedas e batidas na cabeça podem dar um tilt nesse circuito.

Os boxeadores Maguila, Éder Jofre e Muhammad Ali sofreram com a encefalopatia traumática crônica, também conhecida como demência do pugilista, e tiveram como sequela, entre outras, a perda da memória, devido aos repetidos golpes que receberam na cabeça.

Mas a preocupação com a chamada concussão atravessou o ringue e hoje se estudam seus efeitos em jogadores de rúgbi, futebol americano e até do futebol. Desde 2016, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) investiga os impactos causados pelos traumas na cabeça dos atletas nos campeonatos nacionais de futebol e, em 2024, pioneiramente, instituiu a regra da substituição adicional por concussão. Os médicos do time devem informar ao quarto árbitro sobre a lesão de um jogador, permitindo a troca dele sem que isso afete o limite de substituições regulares da equipe. Após a “substituição por concussão”, o jogador deve continuar sendo avaliado e não pode participar de uma partida por, no mínimo, cinco dias.

Um trauma psicológico seria o outro lado dessa bifurcação. Ele pode levar a uma amnésia chamada dissociativa, quando a pessoa exclui passagens dolorosas, que a remetem a abuso, negligência ou violência, por exemplo. “É como se a pessoa jogasse aquela memória num limbo para que ela não continuasse a se perpetuar”, diz Haddad. “Muitas vezes o acompanhante me afirma no consultório que o paciente viveu determinado trauma, mas, quando eu converso com o paciente, parece que ele genuinamente não sabe que passou por aquilo.”

Apagão pós-show

Já a amnésia pós-show é um tanto controversa. Durante a turnê da cantora Taylor Swift pelo Brasil em 2023, alguns fãs postaram nas redes sociais terem sofrido perda de memória. Disseram que se esqueceram de algum trecho ou da maior parte da apresentação. “Nenhum show, por si, faz a pessoa perder a memória”, afirma Aprahamian. O que pode acontecer, segundo o médico, é o espectador focar muito em certas partes da apresentação, ficar desatento a outras e aí registrar apenas aquelas em que prestou mais atenção.

Já Haddad lembra que, em momentos de euforia, a percepção de tempo e espaço talvez seja menor, então o fã acha que ficou poucos momentos na arena ou que fez pouca coisa para tanto investimento.

Luzes piscantes e outros estímulos visuais também poderiam predispor pessoas mais sensíveis a crises convulsivas do lobo temporal, que podem levar a um estado de confusão. Consumo desmedido de álcool e drogas também seria um gatilho potencial tanto para a própria crise convulsiva como para um “quadro tóxico-metabólico de alteração amnética”, ou seja, mais confusão e esquecimento.

Sem falar na compulsiva gravação de vídeos e fotos dos shows por celular. Ao mesmo tempo que registram tudo, é como se o evento só existisse de fato quando revisto pelas telas.

Para lá de seis meses

As amnésias agudas, como a AGT, são frequentes, mas pouco registradas, inclusive por serem passageiras e por vezes a pessoa sequer procurar um serviço de saúde para buscar um diagnóstico mais preciso. As crônicas, ou seja, aquelas que duram mais de seis meses, geram mais estatísticas e normalmente estão vinculadas a demências, mas também a infecções virais, como aconteceu durante a crise da covid-19.

A desmemória pandêmica, porém, aparentemente não se consolidou. “Depois de 2022, a gente acabou não encontrando tanto substrato cerebral para justificar as perdas de memória pós-covid, mesmo porque existe uma irregularidade absurda entre os pacientes nesse sentido”, diz Aprahamian.

Ele explica que muitas pessoas infectadas que estavam assintomáticas notificaram perda de memória tempos depois, enquanto quadros graves não se consumaram em casos de amnésia. Ao mesmo tempo, segundo ele, a memória costuma ser recobrada nessas situações. De qualquer forma, ele lembra que a covid-19 não é território exclusivo da amnésia provocada por infecções. Dengue e infecções bacterianas graves também podem comprometer o registro das lembranças.

Quanto às demências, no Brasil, cerca de 1,2 milhão de pessoas vivem com alguma forma do quadro e 100 mil novos casos são diagnosticados anualmente. O Alzheimer é responsável por cerca de 60% a 80% das demências. Como nessa doença o centro da memória é primariamente afetado, faz sentido deduzir que a amnésia atingirá cada vez mais pessoas no País, mesmo porque a demência vascular e o Parkinson também podem apresentar esse sintoma ao longo da progressão da doença.

Aprahamian faz questão de destacar que há uma diferença importante entre as pessoas que o procuram atestando falta de memória. Há aqueles, a maioria, que autorreferenciam esquecimento de nomes, de panelas no fogo ou de palavras na ponta da língua que só surgem horas depois, não raro durante o banho. “Só de ouvir isso, eu já tranquilizo o paciente, porque a velocidade do pensamento diminui naturalmente com a idade, e recobrar informações fica realmente mais difícil, ainda mais se a pessoa estiver cansada, estressada ou consumindo substâncias que afetam a memória, como indutores de sono”, diz.

Caso diferente é quando a pessoa é levada ao consultório por um cônjuge ou filho apontando a falha de memória naquele parente, mas o próprio diz que, para ele, está tudo bem. “Isso, para mim, é altamente suspeito e preocupante porque os transtornos mais importantes de memória envolvem a perda de crítica”, afirma o geriatra.


Armando*, juiz aposentado de 76 anos que mora em São Paulo, recebeu há três meses o diagnóstico de Alzheimer depois que exames de imagem identificaram o depósito de proteínas nas e entre as células nervosas. Dono de memória privilegiada, passou a apresentar lapsos de memória percebidos especialmente pelos filhos. A esposa dizia que as memórias afetivas do marido, como lembranças de infância e do casamento, não eram seu forte, mas passou a se preocupar quando ele deixou de reter informações do dia a dia, como se não estivesse prestando atenção ao que ela falava.

Além disso, havia um componente hereditário: o pai de Armando desenvolveu a doença, e um irmão mais velho do juiz aposentado está com Alzheimer. A esposa manifesta certa apreensão pelos dias futuros, mas Armando, que já venceu dois cânceres, se mostra resiliente: “Eu não brigo com a vida, eu não escolho o que eu tenho”.

Ambos acharam melhor não se identificarem para essa reportagem, por temor do estigma que ronda a doença. Haddad entende que o estigma está presente em qualquer comprometimento da memória. “A gente joga no conceito de memória quase tudo o que acontece no nosso cotidiano, de linguagem e independência a estratégia, planejamento e organização, quando, na verdade, ela é parte de um quadro cognitivo como um todo”, diz o neurologista. “Mas ninguém quer ser a pessoa que não tem memória.” Por isso, continua ele, são vendidos tantos suplementos que prometem turbinar a memória e a concentração.

Para Aprahamian, é necessário combater esse estigma. “As pessoas têm de entender que é normal perder a memória conforme a gente envelhece, assim como ficamos mais fracos em termos musculares.” E faz questão de registrar: “Tudo o que é preconceito é ruim porque afasta as pessoas. O preconceito, sim, é uma doença”.

Fonte: Estadão – acesse aqui