“Ninguém sabe o que é bom para as mulheres a não ser nós mesmas”

Na primeira matéria da nova série da Revista da APM, trazemos o perfil de Lúcia Santos, primeira presidente da Fenam

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A Demografia Médica no Brasil 2023, estudo publicado pela Associação Médica Brasileira e pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, projeta que até 2035 aconteça a ampliação de 118% no número de mulheres médicas em exercício no País. O levantamento revela não apenas que a ascensão feminina na Medicina já é uma realidade, mas também demonstra que elas vieram para ficar e revolucionar.

A partir desta edição, a Revista da APM inicia uma nova série que traz um pouco da história de algumas das principais personalidades médicas brasileiras. E para dar início, Lúcia Santos, ginecologista e obstetra e primeira presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fenam), traz mais detalhes sobre a sua trajetória profissional, narrando o significado e os desafios de ser mulher na Medicina.

Nascida no Piauí, o interesse pela área médica surgiu por influência do pai, Arimatéa Santos. Ginecologista e obstetra de renome, ele foi titular da disciplina de Ginecologia da Universidade Federal do Piauí, a qual também foi um dos fundadores, e atuou como chefe da Clínica Ginecológica do maior serviço público geral do Piauí, o Hospital Getúlio Vargas.

“Lá, ele fez um serviço de excelência, trazendo para o Piauí a prevenção do câncer ginecológico como rastreio de câncer de colo de útero e de mama. O primeiro mamógrafo do Piauí foi ele quem trouxe e diante de tamanho trabalho não me faltou inspiração. Eu diria que, por meio de meu pai, me foi repassado tudo o que se precisa para ser uma boa médica, como abnegação, humanidade, ciência e altruísmo”, relembra Lúcia.

Atuação

O caminho trilhado até se tornar presidente da Fenam vem de um longo percurso no movimento médico. Exemplo disso é que, por 16 anos, atuou como conselheira no Conselho Regional de Medicina do Estado no Piauí, fazendo com que, graças à sua notável atuação na instituição, surgisse o convite por parte de grupos de médicos – especialistas que, conforme ela relembra, eram muito atuantes na época – para auxiliar na reestruturação do Sindicato dos Médicos do Estado do Piauí (Simepi).

“Com o trabalho que vinha desenvolvendo no sindicato frente a graves problemas, inclusive a precarização que já enfrentávamos na época, culminou a criação da carreira médica no estado do Piauí e na capital Teresina. Isso foi um grande passo para que as ações realizadas no estado nos levassem a transpor os limites físicos de onde estávamos localizados. Em seguida, fui rumo à representação nacional”, menciona.

Como representante do Sindicato, a atual presidente da Fenam recorda que ocupou vários cargos na Diretoria da instituição, contribuindo para o desenvolvimento do trabalho junto dos demais dirigentes sindicais. “Na minha vida profissional e em participação em instituições médicas, nunca planejei algo pessoal, mas fui objetivando conquistas coletivas. No Simepi, assim como na Fenam, o meu propósito
sempre foi elevar o exercício da Medicina para um patamar que pudesse dar satisfação para quem a exerce de maneira ética, principalmente por poder dar ao povo brasileiro Saúde de qualidade, que ele tanto merece.”

Por estar à frente das demandas da Medicina e da Saúde e por ser responsável por desenvolver um trabalho voltado à classe médica e à população brasileira, Lúcia se viu determinada a concorrer à Presidência da Fenam – processo que ela descreve como algo muito distante dos contos de fadas, mas ainda melhor, uma vez que teve de enfrentar obstáculos reais.

“Consegui provar para mim mesma, para os colegas médicos e para todas as mulheres brasileiras que podemos e devemos ocupar um cargo de liderança. Todos os dias peço a Deus que ilumine o meu caminho para boas decisões, que me dê força para enfrentar as adversidades e muita saúde para cumprir essa missão”, descreve.

Desafios

Em 50 anos de Fenam, a primeira mulher a ocupar a Presidência da instituição aponta que estar à frente deste cargo tem um significado muito maior do que se possa imaginar, já que representa apenas uma pequena parte de uma situação muito complexa.

Para ela, é fundamental analisar que, se mulheres que têm acesso à informação, a estudos de qualidade e que convivem em um meio social que, teoricamente, forneceria mais chances de ocupar espaços, ainda não o fazem, isso representa que o contexto no qual estão inseridas ainda possui muitas amarras que as impedem de poder exercer suas capacidades.

“Se você pensar na maioria das mulheres brasileiras, que além do gênero também podem ter aliadas questões como raça, pobreza e falta de oportunidades, isso alcança uma escala ainda maior no quesito desigualdade. A violência doméstica, o assédio no trabalho, a falta de acesso a melhores salários, o desequilíbrio entre gêneros, está tudo relacionado. Se analisarmos o fato de que, mesmo mulheres em condições de privilégio ainda são alcançadas pela violência e desigualdade, isso nos leva a pensar que a solução para tal equidade é um movimento que englobe todas as mulheres de qualquer raça, crença, situação social e econômica, para que deixemos de lado o medo, a falsa segurança e ocupemos, juntas, de mãos dadas, os nossos espaços”, manifesta.

A especialista salienta que a representação política é uma das principais vertentes para garantir a igualdade, proteção e acolhimento necessários. “A política é o lugar que vai nos levar definitivamente para a solução desse problema, desde que entremos nas disputas eleitorais, e mais ainda, que ninguém
faça leis voltadas para as mulheres sem a participação delas. Ninguém sabe o que é bom para as mulheres a não ser nós mesmas.”

Segundo Lúcia Santos, na Medicina, os desafios diários enfrentados pelas mulheres são basicamente os mesmos enfrentados por profissionais de outras áreas. “Não basta ter competência, temos que mostrar duas vezes mais capacidade, e não só isso. Também precisamos lutar incansavelmente para ocupar o nosso espaço de direito, pois muitos homens não aceitam o destaque feminino, nem nos aceitam em cargos de liderança.”

A médica realça as particularidades de atuar na profissão. “A mulher traz a leveza que lhe é inerente. Se observarmos, a maioria das acompanhantes de um paciente em um hospital são mulheres, ou seja, somos cuidadoras natas. Agora, imagine aliar essa característica à expertise da formação médica”, indaga.

Futuro

Para as jovens médicas que estão iniciando carreira, a presidente da Fenam pontua que é imprescindível
que aliem a vida profissional à pessoal. “Uma não invalida a outra. Elas não têm que escolher, mas sim
dividir atribuições na vida pessoal para que, assim como os homens, possam se desenvolver profissionalmente. Lembrando que a maior parte da criação dos filhos recai às mulheres, portanto, elas têm o dever de passar isso para eles, sejam homens ou mulheres.”

Lúcia fomenta que não costuma pautar a sua vida apenas em um plano, mas sim em vários deles. Neste sentido, enfatiza que, mesmo estando sempre disposta a evoluir, suas escolhas são baseadas na felicidade. Além disso, reforça acreditar que todas as pessoas nascem com uma missão voltada à coletividade a qual estão inseridas.

“E isso não quer dizer que deixemos a felicidade de fora. Só poderemos contribuir com algo ou alguém se antes aquela missão trouxer um bem-estar pessoal. A Medicina, para mim, começou como uma paixão, mas depois virou um grande amor. Após tantos anos de estudo, continuo empolgada e agora, fazendo doutorado, vejo que o amor que tenho pela Medicina vai me fazer parceira dela até o fim da minha vida”, estabelece.

Matéria publicada na edição 743 (Março/ Abril de 2025) da Revista da APM

Fotos: Divulgação Fenam/Arquivo pessoal