Em três momentos de minha vida senti um grande “frio na barriga”. O primeiro deles, aos 17 anos de idade, quando fui visitar a Faculdade de Medicina da USP no ano em que prestaria vestibular e, ao subir os degraus que me permitiriam adentrar no seu saguão, absolutamente emocionado, disse para mim mesmo que era ali que eu iria estudar. E foi lá que estudei.
A segunda vez foi quando, ainda jovem, com pouco mais de 40 anos, fui escolhido pelo professor mais importante de minha faculdade para operá-lo, numa situação médica não tão simples e devo dizer que é impossível não relembrar que, ao fazer a incisão cirúrgica, tremia em meu interior pela enorme responsabilidade que estava assumindo. Contudo, logo administrei minha intensa emoção e, felizmente, tudo terminou bem.
E a terceira vez foi em 2010, quando recém-eleito membro da Academia Paulista de Letras, fui conhecer nossa biblioteca, sendo ciceroneado simplesmente pelo príncipe dos poetas, Paulo Bomfim! Eu não conseguia acreditar que aquele momento estava acontecendo!
Três situações distintas, mas muito significativas para mim.
E a eternidade acenou para o Paulo. Em seu leito de UTI, com serenidade, leveza e paz, ele vivia os momentos presentes, sem a preocupação do futuro e seguramente com a percepção que sua vida fez sentido! E ainda tive o privilégio dele, em seus últimos dias, declamar para mim um poema de Raul de Leoni que muito lhe agradava (“nesse poema, ele escreveu um soneto que gostaria eu de ter escrito”) e, em seguida, a meu pedido, um poema dele mesmo, que o cansaço e o sono não deixaram que completasse aquele momento mágico para mim.
Paulo Bomfim era um ser inspirador! Sempre sorrindo, creio que procurava compartilhar sua leveza d´alma e amor a tudo e a todos com aqueles que, por acaso ou não, estivessem a seu lado. Paulo foi um excepcional poeta, mas sua principal poesia não foi escrita, foi vivida, e por quase 93 anos!
Transcrevo abaixo um curto texto que fui rabiscando enquanto acompanhava uma bela homenagem que lhe faziam no Tribunal de Justiça de São Paulo, em 2014, com mínimas modificações.
Paulo
Olho para o Paulo Bomfim e observo sua figura esguia e elegante.
Vejo-o com cabelos ainda cheios que parecem esvoaçar, mesmo estando sempre primorosamente penteados.
Desço. Logo abaixo visualizo um cérebro privilegiado, que pensa, sente, ama, escreve, comanda.
Desço. E vislumbro, então, seus olhos, sempre brilhando, com uma luz maior do que a das mais preciosas pedras.
Desço. E vejo o pulsar de seu coração que, ao bombear sangue para todo o corpo, leva mensagens de alegria de vida a cada uma de suas células.
Desço. Lá está seu estômago, que era a perfeita deixa para organizar almoços onde dividia, com seus privilegiados convivas, a comida simples e saborosa da sorridente Lucia, sempre acompanhada de algum vinho para alisar nossas gargantas.
Desço. E nem preciso procurar, pois facilmente encontro suas pernas que, com a agilidade de uma criança irrequieta, levam seu corpo de um lado para o outro.
E, finalmente, subo. E aí encontro um ser humano que, mesmo antes de existir, já inspirava o Deus de todos nós.
Raul Cutait
Membro da Academia Nacional de Medicina e da Academia Paulista de Letras
Foto: Di Bonetti